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A conversa estava boa, mas ganhou fôlego mesmo quando alguém mencionou um texto da minha colega Madeleine Lacsko para um concorrente. Confesso que parei de ler em “Evangelho Segundo Tarantino”, mas isso não vem ao caso. O que importa é que ela evoca a personagem bíblica Ester para falar de Michelle Bolsonaro e explorar a ideia da esposa como esteio moral do homem. Papo vai, papo vem, ficamos ali, reconhecendo as muitas qualidades de nossas respectivas esposas. “E ai de você se não reconhecer!”, disse uma delas. A minha.
De Michelle Bolsonaro passamos para a situação do cinema nacional, a eterna disputa entre cachorrófilos e gatófilos, o estranho hábito juvenil de passar horas diante do celular assistindo a vídeos no YouTube, bicicletas, sorvetes – e, finalmente, o voto da ministra Cármen Lúcia que, na prática, reconheceu a existência de um “esforço de exceção” no Brasil. Tudo para eleger Lula.
“A quem ela [Cármen Lúcia] presta contas de seus votos, além da própria consciência?”, pergunta alguém, se compadecendo da solidão suprema. E todos nós concordamos num silêncio reflexivo logo interrompido por interjeições de absurdo! e inacreditável!. Aproveitando a ilusão de liberdade que ainda paira sobre o Alexandrinistão, e irmanados na confiança que banha nossa amizade, trocamos opiniões tão sinceras quanto impublicáveis.
Até que um dos presentes à confraternização, cujo nome não menciono com medo de que ele acabe tendo de servir café para a Polícia Federal (de novo!), nos traz de volta à melancólica realidade do homem comum e seu votinho unitário, egoísta, desprovido de qualquer compromisso com a esposa, os filhos ou o futuro. “Quero ver quando os filhos e netos dessa gente que faz o ‘L’ perguntar como eles puderam apoiar a censura e a roubalheira do PT em defesa da democracia. Quero só ver se isso daqui virar uma Venezuela”, disse.
Na hora imaginei o filho de um esquerdista qualquer, daqueles que cumprimentam com a mão mole, sabe?, cobrando do pai o apoio à censura “para combater a desinformação” e ao PT para “unir o país”. O pai olha para um lado, olha para o outro. “Ah, pai, não vai me dizer que em 2022 você votou no Lula, né?”, pergunta o fedelho. O pai ri amarelo antes de responder: “Fale baixo. Se alguém te ouve é capaz de te confundir com um fascista. Votei no Lula, sim. Paciência. Eu era jovem e ignorante. Agora vai lá no quintal pegar o Rex que a tua mãe já tá amolando a faca”.
Ri e minha risada aparentemente interrompeu um raciocínio importantíssimo de um amigo. Que ficou brabo! Pedi desculpas e me pus a descrever a cena do parágrafo anterior, substituindo apenas “um esquerdista qualquer” pelo nome de um esquerdista específico conhecido de todos os presentes. Minha mulher apareceu bem nessa hora e já foi puxando minha orelha. “Tá falando mal dos outros?! Tsc, tsc, tsc” – e saiu pisando forte. Até pensei em ir atrás e explicar, mas...
...fui chamado pelos amigos, que queriam saber de que raça, afinal, era o Rex da história. “Sei lá. Acho que um Lulu da Pomerânia”, respondi. Alguém tentou um trocadilho com “Lula da Pomerânia”, mas não deu certo. Conversamos ainda sobre isso & aquilo, tal & tal e etcétera. E eu juro que tentei prestar atenção quando um deles começou a contar suas aventuras durante uma viagem recente à Itália (“Nossa! Tem umas igrejas lá que nem te conto. E os museus, então?!)”.
A história de prestar contas à prole, porém, não me saía da cabeça. Fiquei me perguntando se era soberba de minha parte. Mas também fiquei pensando no compromisso que assumimos tacitamente com as gerações vindouras: o de tomar as melhores decisões possíveis pensando não no futuro diabolicamente utópico das ideologias, e sim no futuro palpável do que, na falta de uma palavra melhor, vou chamar de bom senso – aquele que não exige grandes esforços de imaginação ou contorcionismos retóricos.
“Vou escrever sobre isso!”, disse, me levantando e interrompendo um dos amigos que falava animadamente sobre alguma coisa. “Mas já? Tão cedo!...”, disse o anfitrião, se esforçando (e fracassando) para conter um bocejo. Levantando meu corpanzil cansado e humano, chamei a mulher e uma eternidade e meia se passou até que ela decidisse que era hora de ir embora. No longo trajeto do 22º andar até o térreo, abri um sorriso de genuína felicidade. Como é bom não ser cupincha de ex-presidiário.