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São muitas as formas de escravidão a que nos submetemos sem perceber ou até voluntariamente, quando calculamos por instinto os custos da liberdade e preferimos abdicar dela. Sim, porque a liberdade causa angústia e nos assombra com suas promessas de prazeres intelectuais e sua ameaça de consequências seriíssimas.
No começo de janeiro, escrevi sobre o livro Como Pensar: Um Guia de Sobrevivência Para um Mundo em Desacordo. Nele, Alan Jabocs explora bem essa questão da liberdade de pensamento. Ou melhor, a questão de como abrirmos mão facilmente da liberdade a fim de satisfazermos algumas necessidades bastantes primitivas do ser humano, entre elas a necessidade de estar com a razão e a necessidade de ser aceito.
Essas duas necessidades, em conluio, levam a pessoa a se conformar com uma realidade ilusória e até mesmo a impor essa realidade ilusória sobre os demais. A isso se pode dar o nome de fascismo, embora eu acredite que a marca já tenha sido registrada por alguém.
(E, antes que você me pergunte como eu sei qual realidade é ilusória e qual é a concreta, me adianto para dizer que não sei. Não tenho a menor ideia. Mas acordo todos os dias e fotografo o nascer do Sol por um motivo: para me lembrar de que existe uma realidade concreta e existe outra, ilusória, que é a forma como interpreto a realidade. E que eu devo lutar o tempo todo para não deixar que a segunda estrague muito a primeira).
Senzala da peste
Me diga se isso não se aplica ao caso muito concreto do meu fictício amigo Baudolino. Agora mesmo, enquanto escrevo este texto, ele já bloqueou 23.356 pessoas em suas redes sociais por causa do coronavírus, além de ter usado todo um dicionário de insultos para refutar as pessoas que não estão na mesma e proverbial caverna platônica de sua, dele, existência.
Em que se baseia tamanho ódio, indignação, ressentimento, desejo de vingança, de exterminar mesmo essas pessoas que ousam pensar errado no coração outrora peludo de Baudolino? Assim bem sutilmente eu chegaria para ele e diria, cara, você tá preso na senzala da peste. Aí, quando conseguisse chamar a atenção dele, eu enumeraria as algemas que o mantêm preso.
A primeira e mais evidente dessas algemas é a do medo que, num piscar de olhos, vira pânico. Medo de quê, exatamente? Responder a essa pergunta é mais difícil. O mais óbvio deles é o medo da morte por Covid-19. Da morte em si e da forma de morrer. Mas tem também o medo de sobreviver depois de passar dias sofrendo. Sem falar no medo de, Deus me livre!, ser portador assintomático. E, por fim, o maior medo de todos: o de lutar contra moinhos de vento, isto é, o de passar incólume pela doença.
Na outra mão, o que tira a liberdade do amigo é uma apressada análise de custo/benefício de tudo o que ele investiu para ser o que é hoje nas redes sociais: uma pessoa inteligente e cheia de inquestionáveis virtudes. Veja bem, Baudolino é um jovem senhor de seus 35 anos e, nos últimos dez anos, se esmerou em construir para si um caráter e um avatar nas redes sociais. E isso lhe rendeu muitos ganhos, senão financeiros, emocionais. Jogar-se no caos da liberdade de pensamento, pois, seria para ele o mesmo que comprar PETR3 nestes tempos de alta volatilidade. Baudolino prefere a segurança tola da teimosia que ele, virtuoso que só, chama de coerência.
Razão e aceitação
Nos tornozelos, Baudolino está preso na senzala da peste pela necessidade de ter razão. Sim, porque ele se vê como uma pessoa inteligente e capaz do mesmo discernimento fino daqueles que elaboram e interpretam modelos matemáticos que vocês, pobres mortais, em sua ignorância infinita e desprezível, não compreendem. E como uma pessoa inteligente e capaz de um discernimento fino da realidade poderia estar errado, não é mesmo? Mas é a tal coisa: o diabo só é o diabo porque não se contentou em ter sido feito à imagem e semelhança de Deus e quis ser Deus.
Na cabeça, ele traz ainda a espinhosa coleira da vaidade. É essa a marvada que o faz submeter a visão de mundo, a realidade por ele compreendida, à chancela de uma galerinha. A aceitação é uma necessidade humana muito compreensível, sobretudo se pensarmos que somos uns solitários unidos por laços de amizade e até casamento cada vez mais frágeis. Mas até que ponto aceitamos abrir mão do que vemos como Verdade só para não ficarmos de mal com o amiguinho?
Não que Baudolino e todos os que, como ele, acreditam estar vivendo o Apocalipse não possam ter alguma razão. Ou até mesmo toda a razão. Mas será que essa é a melhor forma de enfrentarmos o (suspiro, reticências, emoji de olhinho revirado) Armagedon? Se este é o fim (não é), se a pandemia é mesmo peste (não é), se quem não concorda com medidas restritivas é inimigo (não é), irresponsável (não é) e até assassino/genocida (não mesmo!), será que ficar nas redes sociais expressando pânico e indignação, se vangloriando da virtude da imobilidade e comentando todos os gráficos que aparecem com uma torrente de pontos de exclamação desesperados é mesmo a melhor forma de sobreviver a isso?
Não proponho que ninguém mude de ideia – até porque sei que isso é impossível. Aliás, aproveito para perguntar ao leitor: qual foi a última vez que você mudou de ideia sobre alguma coisa, qualquer coisa? O que proponho aqui é o mesmo que Jacobs propõe em seu extraordinário Como Pensar: Um Guia de Sobrevivência Para um Mundo em Desacordo: saia da redes sociais por um instante, faça uma autoanálise das ideias que lhe chegam e de como elas moldam a sua realidade e se pergunte, com toda a sinceridade possível, por que você adere a esse ou aquele grupo.
Seja livre – nem que seja por alguns instantes, tomando sol na sacada, olhando o mundo semiparado e admirando o horizonte físico na falta de um horizonte temporal.