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Jamais me convide para um debate. Se for para uma conversa, um bate-papo e até uma despretensiosa mesa-redonda, tudo bem. Vou felizão! Mas não para um debate. Porque sou péssimo debatedor.
Na verdade, tenho ojeriza a debates – como participante e espectador. E quanto mais acalorado pior. Você há de concordar comigo: há algo de profundamente ridículo no ato de gesticular, citar Fulano ou Sicrano, fazer aspas no ar e levantar o tom de voz na tentativa de convencer seu “adversário” de que ele está errado. E há algo de incomodamente perverso no ato de assistir a esse espetáculo grotesco.
E, no entanto, é justamente disso que as pessoas gostam. Amam. Hereticamente adoram. Tanto é assim que dizemos travar debates na “arena pública”, onde os gladiadores da retórica podem usar até dedo no olho e chute nas partes baixas (tudo simbólico) para arrasar o oponente. As pessoas (essa abstração assustadora) adoram os trocadilhos chulos com o nome do oponente, os argumentos ad hominem, as rasteiras lógicas, o desfile de falácias, as citações mentirosas ou deturpadas – enfim, todo o obsceno arsenal dos debatedores contemporâneos.
Em se tratando de debate, me vejo mais como o touro Ferdinando do desenho clássico – mas sem o talento inato para sair chifrando e pisoteando os toureiros. Passo meus dias lá, ou melhor, cá debaixo desta árvore, cheirando as flores do campo, lendo a mais recente coletânea de poemas de Jones Rossi e brincando irresponsavelmente com as abelhas. Se levo uma aferroada, saio em disparada até o computador, escrevo maltraçadas pretensiosamente bem-traçadas e, assim que boto o ponto final no texto, volto ao ritual de sorver o perfume das flores sob uma árvore. Me deixa.
Sou um debatedor tão tão tão ruim que, mesmo quando tenho razão, isto é, em 99,9% das ocasiões, assim que me vejo debatendo com alguém vou logo dando uma de francês e hasteando a bandeirinha branca. Não importa o assunto. Pode ser política, religião, comportamento, cultura, esporte. Em apenas 30 segundos, finjo nocaute só para o outro ficar feliz e vestir o cinturão cafona da razão. Quer me chamar de burro? De imbecil? Fique à vontade.
Na verdade eu não apenas finjo o nocaute. Durante esses trinta segundos realmente mudo de ideia. Viro petista, se estiver debatendo com um petista; viro ateu, se alguém estiver tentando me convencer da inexistência de Deus; passo a defender os comportamentos mais indefensáveis do mundo; digo que sou fã da Regina Casé; e até reconheço que o Athletico é um bom time. Tudo para evitar a chuva de perdigotos do outro lado.
Não que minhas convicções tenham alicerces frágeis. Longe disso! Depois de certa idade o maior perigo é ter convicções com alicerces sólidos demais e que jamais se submetem ao benéfico efeito corrosivo da reflexão. Por isso tento manter um nível saudável de maleabilidade. Mas podem ficar tranquilos. Passados os trinta segundos regulamentares, sempre recupero o que considero bom senso. E se eu considero bom senso é porque é bom senso mesmo. Prefiro dizer que o que acontece nesses trinta segundos é antes um vislumbre da realidade vista com os olhos alheios, durante os quais eu quase (quase!) compreendo como alguém pode ser petista, ateu, fã de Regina Casé e athleticano. Quase.
Não entendo a utilidade dos debates. Em teoria, eles serviriam para dar às pessoas elementos a fim de que elas formassem sua própria opinião, aliando-se a este ou aquele lado da disputa. Na realidade, porém, os debates são apenas distrações que invariavelmente humilham debatedores e plateia. Os debatedores porque o “vencedor”, se tiver caráter, ficará com pena do derrotado. O “derrotado” porque falou bobagem ou sucumbiu aos argumentos superiores do oponente. Ou porque insistiu no erro.
E a plateia porque, longe de formar sua própria opinião a partir dos argumentos usados como lâminas afiadas pelos debatedores, entra na arena pública já com a opinião formada. E se expõe à vitória ou derrota alheia como se fosse sua. Pior, nunca conheci um só apreciador de debates que fosse um bom perdedor, aceitando o resultado da querela. A plateia, mesmo depois de uma surra de argumentos, sempre se dirá vitoriosa ou vítima de uma grande injustiça – a ser vingada no próximo debate.