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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Como seria “2021”, um romance distópico escrito por Jorge Orelhinha

Nesta versão de "1984", de George Orwell, Winston Smith é Zé da Silva, um funcionário raso do Ministério do Lockdown. (Foto: Pixabay)

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Zé da Silva é membro do Partido Sanitário Democrático Brasileiro (PSDB, mas é pura coincidência) em Campo Mourão, capital do Tupiniquinistão, estado totalitário eternamente em guerra com o Hermanistão, ao sul, e o Worldly Kingdom of Logic and Common Sense, ao norte, leste e oeste.

Aonde quer que vá e o que quer que faça, Zé sabe que o Partido o observa por meio de telas. “Ponha a máscara!”, diz a voz do onipresente líder, conhecido apenas como O Grande Pio, assim que Zé se levanta da cama. “Já passou álcool em gel hoje?”, pergunta a mesma voz trovejante sempre que Zé está meio distraído. “Pô, Zé, tu tá se aglomerando aí, mané!”, repreende O Grande Pio quando o personagem se aproxima a menos de 2,5 metros de outra pessoa.

O PSDB controla absolutamente tudo no Tupiniquinistão, da história ao idioma. Digo, idiome. Em 2021, ano em que se passa a história, o Partido obriga as pessoas a se comunicarem por meio de um novo léxico capaz de evitar o fim da revolucionária pandemia de Covid eliminando palavras como “cloroquina” e “vacina”. Aliás, no Tupiniquinistão é proibido até imaginar um mundo sem máscaras e lockdown. Na verdade, esse é o pior de todos os crimes por lá.

No começo do romance, Zé está tristão com o Partido, que o proíbe de ir ao supermercado comprar itens não-essenciais, de ouvir um jazzinho no Dizzy e de ir ao show do Guns’n’Roses. Arriscando-se a ser preso, ele compra um caderno clandestino numa papelaria que funciona ilegalmente e começa a escrever um diário, no qual registra suas reflexões mais pecaminosas, como “E se o vírus escapou de um laboratório em Wuhan? Hein? Hein?”

Zé trabalha no Ministério do Lockdown, onde decide o que é essencial ou não para a manutenção da pandemia. Lá, ele conhece uma bela morena, mas teme que ela venha a denunciá-lo ao Partido por ter um dia cogitado a hipótese de que talvez, só talvez, o mundo fosse um lugar melhor sem o coronavírus. Zé também está incomodado com a incoerência do seu trabalho. Semana passada ele decidiu que academias de ginástica eram essenciais, mas hoje decidiu que não, só porque estava com preguicinha de correr na esteira.

Além de escrever seu diário clandestino, Zé passa as noites caminhando pelas favelas de Campo Mourão, onde os vacinados e ex-infectados vivem em relativa liberdade. Uns nem mesmo usam máscara, imagina!

Um dia, Zé recebe um bilhete da morena perguntando “o certo é ‘entubação’ ou ‘intubação’?”, o que ele interpreta como uma mensagem de amor. Zé e Maria começam a se relacionar, mas sempre com medo do Partido, que jamais permitiria que seus corpos se tocassem ou que eles trocassem saliva. Zé, contudo, fica paranoico. Ele tem certeza de que o Partido um dia descobrirá o relacionamento antissanitário e os enviará para o temido Campo de Reeducação João Dória Jr. Maria, enquanto isso, está feliz da vida botando água no feijão. “Ô, Zé, deixa de bobagem e vem aqui me fazer um cafuné”, pede ela.

Até que Zé recebe uma carta do Paxeco, que trabalha com ele na repartição. Ele põe a máscara, se besunta todo em álcool em gel, pede um Uber e vai se encontrar com Paxeco, que vive numa mansão. Conversa vai, conversa vem, Paxeco diz que não aguenta mais essa coisa de Covid e que faz parte da Irmandade do Saco Cheio. Ele convence Zé e Maria a entrarem para a Irmandade e os presenteia com um gibi que conta como era a vida antes do Grande Reset.

Zé e Maria estão lá no bem-bom quando, de repente, ouvem batidas na porta. São soldados – muito educados, por sinal. Convidados a entrar, os soldados tiram as botinas antes de explicar que o Seu João, do apartamento 701, os denunciou por terem pronunciado uma das 1863 palavras ultraproibidas. Zé ainda tenta argumentar que tudo não passa de um equívoco, que ele simplesmente bateu o pé na quina da cama e, quando Maria lhe perguntou se doeu, ele disse “claro, foi na quina”. Mas não adiantou.

Preso e enviado a um lugar chamado Ministério do Agora Você Vai Ver o que É Bom pra Tosse, Zé descobre que o Paxeco era um espião. “Eu sabia!”, diz ele para uma câmera invisível. Ao longo de meses, Paxeco tortura Zé, obrigando-o a assistir às sessões da CPI da Covid. Mas Zé é duro na queda. Cansado, Paxeco finalmente envia Zé para a Sala da Incompreensão, onde ele será obrigado a encarar seu maior medo. Ao longo do romance, Zé tem pesadelos recorrentes nos quais é atacado por leitores que não leram “1984” e que não compreendem suas referências. Paxeco não quer nem saber e o coloca numa jaula. Ele está prestes a mostrar a Zé os comentários indignados dos leitores quando nosso herói finalmente cede e diz que tudo é culpa da Maria, que não sabia se o certo era "entubação" ou "intubação".

Com a alma destruída, mas pelo menos protegido do coronavírus por uma máscara PFF2, Zé é libertado. Na saída da prisão, ele encontra Maria, mas sente nojinho só de lembrar que um dia se aglomerou com ela. Sem se dar conta, Zé passa a aceitar tudo o que o PSDB diz e aprende a amar O Grande Pio como se ele fosse a Verdade.

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