Na minha adolescência, vivi um período obcecado pela morte. Li todos aqueles poetas românticos que morreram de tuberculose, visitava cemitérios, fechava os olhos e tentava me imaginar para além do momento derradeiro. Bem cedo eu encarei o abismo e o abismo me encarou.
Aos poucos, a obsessão perdeu força e virou apenas um interesse. Quase um passatempo. Às vezes eu estava assim fazendo algo bem à toa (admirando um selo do Burundi) e a imagem da morte me vinha à tona num átimo – e desaparecia. Nem todas as visitas, porém, foram tão rápidas e tão etéreas. Houve mais de uma ocasião em que a Indesejada se sentou ao meu lado no sofá e propôs: agora vamos conversar?
Para a surpresa de ninguém, nessas ocasiões eu aceitava o convite. E ficávamos lá eu e a Dita-cuja papeando, ela querendo saber mais de mim do que eu dela – o que é deveras curioso. E pode ficar tranquilo que não vou, aqui, evocar a cena-clichê do homem que joga xadrez com a Fadada. Até porque como enxadrista tenho a mania de sair atacando a esmo, como se minhas peças levantassem bracinhos para o ar e saíssem gritando ensandecidas.
Mas onde é que eu estava mesmo? Ah, sim! (É que chegou meu almoço). Eu estava falando das minhas conversas com a Definitiva. Algumas vezes, esses diálogos se transformavam em sonhos que, por sua vez, davam origens a longos textos que jamais escrevi. Eram histórias que tinham como ponto de partida sempre uma mesma constatação: então é assim.
Então é assim:
Se não me falha a memória falha, havia até um projeto literário envolvendo a epifania pós-morte. Eu pretendia, ou acho que pretendia, explorar as várias formas como as pessoas imaginam esse “momento pós-tempo”, de acordo com a religião. E até mesmo de acordo com o ateísmo e agnosticismo. Ah, ficava (e ainda fico) imaginando a surpresa de um ateu ao se deparar com o rosto de Deus!
“Então é assim!” será a primeira coisa que falarei ou pensarei depois que morrer e me vir num Paraíso cheio de casinhas brancas habitadas por gargalhadas e com ruas ladeadas por postes esculpidos por Bernini, de onde jorra eternamente a voz de Ella Fitzgerald cantando Irving Berlin. Ou melhor, seria a primeira coisa que aquela porção jovem de mim falaria ou pensaria. Porque a porção adulta faz uma ideia bem distinta de tudo isso.
A porção adulta, com o mindinho mergulhado na velhice, vê que a mortezinha o acompanha desde o nascimento e tem se revelado a cada novidade que a vida lhe apresenta. Assim que saí do útero materno, o “então é assim!” se manifestou naquele berreiro que se espalhou por todos os andares do hospital São Vicente. No primeiro beijo e nas últimas páginas de um livro policial, na primeira noite com a mulher ou nas últimas linhas da crônica diária. Quando se descobre ou se faz algo, o espanto toma conta do ser, que morre um pouquinho. Para ressuscitar logo em seguida.
O mundo vira outro e a vida melhora consideravelmente quando recuperamos o poder do espanto – para os que não o perderam para sempre, claro. Não me refiro ao espanto indignado de quem morre e se descobre no inferno. Falo do espanto curioso de quem percebe o caráter primeiro ou último de todas as ações humanas.
Então é assim uma injustiça. Então é assim o esquecimento. Então é assim a maldade. Então é assim a mentira. Então é assim a fome. Então é assim a tirania. Então é assim a abundância. Então é assim o medo. Então é assim a doença. Então é assim a cura. Então são assim os dias. Então é assim que se chega ao fim.
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