Cometi o crimideia de pensar em “golpe”. É, golpe. Ou gópi, como dizia alguém durante o impeachment de Dilma Rousseff. Golpe de Estado, para ser mais específico. Também conhecido como revolução, usurpação do poder ou ruptura. Calma! Não é desejo nem nada. Longe de mim! Confesso, porém, ter pensado no assunto – o que para certas autoridades é um crime. Em minhas reflexões, analiso cenários que vão do catastrófico ao bom. Ou no mínimo aceitável. E, pândego que sou, imagino o golpe sobretudo em suas formas mais bizarras e nonsense.
Não consigo evitar. E não é por falta de tentativas, Alexandre. À noite, antes de dormir, tento ler romances policiais bobinhos e poesia de românticos tuberculosos. Não adianta. Antes de pegar no sono, me esqueço das tramas detetivescas e as rimas ricas dão lugar ao ritmo das marchas militares. É, sei que nem todo golpe é militar. Aliás, ouvi dizer que tem golpe que se dá ao som quase inaudível das canetas sobre o papel ou do farfalhar das togas negras contra os pilares de mármore de palácios que não conheço.
Mas meu imaginário parece estar contaminado demais. Daí o metrônomo verde-oliva das botinas contra o asfalto. A boa notícia, acho, é que em minhas fantasias não há caos nem carnificina. Para ser sincero, até mesmo o estampido das botinas soa baixinho, abafado por um silêncio pesado. Como se todo mundo estivesse muito calado. Muito pensativo. Muito concentrado entre o “eu avisei!”, o “eu sabia!” e o “e agora?!”.
Testemunha ocular da história
Em minhas fantasias de golpe, não sou nem herói nem vilão. Estou mais para “testemunha ocular da história”, para usar um chavão em desuso. E aproveito para perguntar: um clichê deixa de ser clichê depois de algum tempo em desuso?
Munido apenas de coragem e vontade de imaginar o golpe, saio para apreciar o entorno inventado. Os mendigos, digo, vossas senhorias os moradores de rua continuam se enfileirando para tomar o café das freiras. A dona da mercearia insiste em abrir. O taxista ignora a manchete histórica e acompanha a provável escalação do time para o jogo de domingo. Por falar nisso, o Coxa perdeu mais uma.
Dentro de casa também tudo continua igual. Alheia à política, nesse meu golpe imaginado a Catota brinca com uma bolinha feita com papel-alumínio. E a vida doméstica segue seu curso natural, com as demandas de sempre e... Eu tirei o lixo ontem, amor. Hoje é seu dia. É, eu sei que a louça já está transbordando na pia. Me dá só mais um minuto que estou terminando meu texto pra Gazeta. Já vai sair? Até depois. Te amo.
No homem o que muda é o medo: maior quando imagino um golpe de toga e/ou comunista, menor quando o golpe mais parece contragolpe. De resto, nesse dia histórico acordo com as mesmas preocupações cotidianas com as contas, sem falar nos dilemas metafísicos. Por falar em golpe de toga e/ou comunista, vai aqui outra confissão: me divirto imaginando os mais improváveis ditadores sanguinários esquerdistas, de Jean Wyllys a Anitta. Cada qual impondo as mais improváveis sandices só porque não entendem o sentido de “utopia”.
Se serve de consolo, Alexandre, nesses delírios de golpe, mas não golpistas, depois de algum tempo a democracia sempre é restaurada. Às vezes leva anos. Às vezes, não vou mentir, décadas. Na maioria das vezes, porém, é no mesmo dia, antes mesmo de Os Pingos nos Is. Mas falo de democracia mesmo. Democracia com dê maiúsculo e todo trabalhado no gótico. Não essa democracia que prende deputado com imunidade parlamentar nem que apreende celulares de empresários por causa de uma conversinha à toa.
Não adianta. O golpe está no ar. Ou, pelo menos, está na minha pobre mente politicamente poluída. Não queria. Não quero! Juro que, em vez de imaginar rupturas, preferia recitar aqui o belíssimo poema do João Filho que li ontem (“Ensina-me, Senhor, a ser ninguém. Que minha pequenez nem seja minha”). Por mais que me esforce, porém, a fantasia ora macabra, ora cômica, se impõe. Eu vejo golpe por todos os lados.
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