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Me aproximo da mesa dos intelectuais. Entre goles de cerveja quente e com os dedos sujos de torresmo, eles conversavam. Ao me verem, contudo, paira aquele silêncio constrangedor que é o terror de nós, os chatos. Percebo e tento desbaratinar com o manjado discurso autodepreciativo. Disfarça que o assunto da conversa chegou. Aquela coisa. E vou me sentando, como se minha presença não fosse o incômodo que evidentemente é.
- A gente tava falando da Constituição.
- A Constituição cidadã? A do Ulisses? Não acredito que vocês estão lendo aquela estrovenga.
- Viu? É por isso que a gente não gosta de você – diz um deles, com mais honestidade do que o desejável. – Sempre fechado no seu mundinho de escritores russos. Tem que ler a Constituição, cara. A Cons-ti-tu-i-ção-do-Bra-sil-sil-sil.
Digo que não consumo literatura de massa e todos na mesa reviram os olhinhos por trás de seus óculos fundo-de-garrafa. Como se eu não estivesse ali, eles retomam a conversa. Um diz que a Constituição é melhor que Stephen King – o que, convenhamos, não é tão difícil. Outro conta que teve de dormir com a luz acesa depois de ler certas partes.
Sobre a mesa do bar, vejo um exemplar do livrinho. Já todo amarfanhado, com orelhas de burro e a tradicional capa com marcas de café e gordura. Enquanto meus amigos debatem o papel do Tribunal de Contas da União na relação harmônica entre os poderes, pego o exemplar e, na folha de rosto, leio a dedicatória. “Para Xande, que gosta tanto de mesóclises quanto de incisos. Com admiração, DT”.
Por um instante, me perco refletindo sobre a existência improvável, mesmo nesse infinitão de meu Deus, de alguém que goste muito de mesóclises e de incisos. É quando ouço, por alto, a conclusão de um dos intelectuais. “A Constituição é a melhor obra do gênero escrita desde 1967. Quem não leu é bobo, feio e cara de mamão”. Recebo aquilo como uma ofensa e tasco:
- Oquei. Vocês venceram. Vou ler a Constituição – declaro para a mesa. Os intelectuais me olham e, como se eu não estivesse saindo de fininho com a Constituição debaixo do braço, continuam o acalorado debate sobre essa obra-prima da literatura jurídico-policial, escrita por algumas centenas de constituintes inspirados por Dona Democracia, a maior diva que as letras tupiniquins já viram desde Clarice Lispector.
Os perpetradores de sempre
Quem diria. Logo eu, que jamais aderi ao modismo de Harry Potter ou Elena Ferrante, passei aquela noite virando página após página da Constituição do Brasil. E não poderia ser diferente. Esse tipo de livro é pensado para nos fazer continuar lendo, a despeito das pálpebras pesadas e da hora avançada.
Logo na primeira página, no preâmbulo, sou apresentado à narrativa densa e à linguagem marcada pelo humor e tensão. Quem quer que tenha escrito, sob inspiração da Dona Democracia, aquela frase cheia de vírgulas e palavras vazias, tomando o cuidado para incluir Deus apenas como um ser protetor, é um gênio do terror jurídico.
A trama começa a pegar fogo logo ali no capítulo 2, com as múltiplas redações do que constituem ou não direitos sociais – alterações feitas para incluir até alimentação (que vem antes do trabalho), a moradia e o transporte. Sim, o transporte! Dona Democracia, neste ponto da história, começa a desenhar o crime perfeito que nós, leitores, ansiamos desvendar na última página: quem sequestrou (e possivelmente matou) o Brasil.
Com as unhas completamente roídas, viro folha após folha. Paro nos artigos que tratam dos servidores públicos, seus deveres mínimos e privilégios máximos, viro para minha mulher e digo que não acredito, não é possível, muitos pontos de exclamação no ar. Ela, que no momento lia “O Último Suspiro do Mouro” (não confundir com a sátira “O Último Suspiro do Moro”) concentradíssima, quase morre do coração.
- Você tem que ler esse livro – digo. – É incrível!
- A Constituição?! Tem certeza?!
Respondo que sim, pigarreio e uso meus parcos dons dramáticos para ler, com a devida carga emotiva, a parte da Constituição que fala da divisão dos poderes. Minha mulher larga o Rushdie e arregala os olhos. E eu leio e leio em voz alta e minha garganta já está seca quando o capítulo acaba e ela está sem palavras. Boquiaberta, de queixo caído, perplexa, abismada, atarantada, atônita, atordoada, aturdida, embasbacada, estarrecida, estupefata. E pasma. Apesar do adiantado da hora, me levanto para tomar um café e anuncio: atravessarei a noite, se for preciso.
- Tem certeza? Você precisa trabalhar amanhã.
- Sim, mas antes preciso descobrir quem sequestrou o Brasil.
Ela vira para o lado e pega no sono. Continuo a leitura, o coração disparado. O mistério perde um pouco de força na Seção IX, que trata da fiscalização contábil, financeira e orçamentária. Nesta hora, quase durmo. Quase. Porque logo em seguida leio sobre as responsabilidades do Presidente da República e me obrigo a perseverar. A trama fica mais e mais complexa.
Entram em cena o STF (eternos suspeitos), a Justiça do Trabalho (parte mais hilária do livro) e até uma gangue de artigos sobre impostos. Avanço para as seções ou capítulos ou partes ou sei lá como se chama sobre as políticas agrícolas, a saúde, a previdência e até os índios.
Ao adentrar o fatídico TÍTULO IX”, que trata DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS GERAIS, me pergunto por que os constituintes, inspirados por Dona Democracia, gostam tanto de gritar. E também se, a despeito de todas as facadas, tiros e esganaduras que recebeu, o país sobreviverá ao cativeiro. Lá fora o dia nasce. Falta pouco, muito pouco para saber quem sequestrou e matou (?) o Brasil, grande vítima desse complô todo. Leitor experiente de Agatha Christie e Georges Simenon que sou, desvendo o mistério pouco antes do último parágrafo.
- Pequepê! - grito para a manhã silenciosa pós-toque de recolher. A mulher acorda assustada, mas curiosa.
- E aí? Descobriu quem sequestrou o Brasil? Quem foi? Conta! Conta!