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O Departamento Jurídico sabiamente aconselhou: a partir de amanhã (16), com o início oficial do período eleitoral miau miau coisa e tal, é melhor evitar sátiras e textos que possam ter algum tipo de interpretação mais ampla. Do contrário, posso ser obrigado a ceder este espaço para um “direito de resposta” escrito por um assessor analfabeto. Como não quero que meu leitor passe por uma experiência traumática dessas, prometi ao ilustríssimo esquire que pisarei em ovos. Quando, na verdade, queria dizer que pretendia passar os próximos dois meses flanando no fio da navalha. Mas fica cá em nós.
Foi assim, caminhando contra o vento, sem lenço nem documento, que no fim de semana me vi diante do chafariz da praça Osório, contando a um amigo, pela milésima vez, a história de quando tomei banho ali. Neste momento você deve estar pensando “que nojo!” e “compartilha essa história com a gente, cara!”. E, já que estamos num momento de confidências, me permita confessar que estou morrendo de medo de ser confundido com um flâneur. Por isso, deixarei essa história para outro dia. Talvez até para uma crônica com a presença da minha mulher e da Catota, que andam um tanto quanto ausentes daqui.
Acelerandoopassoassimbemrápido, eis que me vejo na Rua XV, também conhecido como “O Calçadão de Copacabana das Araucárias” ou “A Ramblas das Araucárias” ou “O Malecón das Araucárias”. Tudo é das araucárias no reino das araucárias. À minha direita, vejo uma roda de capoeira cheia de pessoas com camisetas do Lula e bonés do MST. Comento com o amigo que, caramba, é isso o que o futuro nos reserva! “A Revolução se fará ao som dos berimbaus!”, digo, com solenidade fingida.
Damos mais alguns passos, trocando hipérboles pessimistas. Ele diz que ao menos el paderón estará pintado com as cores do arco-íris. Rio, me distraio e quase sou atingido por uma raquetada de badmington. Aqui talvez o leitor mais cético possa estar desconfiando da minha narrativa, mas ela é a mais pura realidade (pode vir checar, Agência Lupa!). Tomando o cuidado para me desviar das petecas, pois, dou mais alguns passos e.
“Estamos ferrados!”
O que é que estou vendo?! Não pode ser! Como se estivesse num desenho animado, esfrego os olhos e o que tenho diante de mim é a materialização de um temor. Não exatamente um temor meu, mas um temor que está por aí. À minha esquerda (oh, que ironia!), veja uns 15 meninos e meninas enfileirados e prestando continência para outros dois meninos muito sérios – como convém a sargentos-mirins. Viro para o amigo que, de olhos arregalados, parecia ainda mais assustado do que eu.
“Sentido!”, grita um dos sargentos-mirins. Com cara de brabo e tudo. Os meninos e meninas batem com as mãos nas laterais das pernas. Por puro reflexo, também fico em posição de sentido. Saudade do Madalena Sofia... “Mostrar armas!”, grita o outro sargento-mirim. Os adolescentes prestam continência, mas desta vez desobedeço. “Descansar!”, grita já nem sei quem. O grupo afasta as pernas e leva as mãos às costas. Todos muito eretos. Compenetrados como se estivesse prestes a desembarcar na Normandia.
Eu e o amigo dizemos ao mesmo tempo “milinciacel” – e um não entende o que o outro disse. “Milícia!”, repito. “Incel”, repete ele. De modo que os dois ficam entendendo a estupidez um do outro. Imediatamente penso nas milícias bolivarianas e em exércitos infantis de documentários sobre a barbárie na África. Depois, ao ver dois meninos franzinos (que espero poder chamar de nerds sem ofender ninguém, porque eram mesmo nerds), imagino uma Brigada Juvenil Jordanpetersoniana. Talvez um Pelotão Integralista. Ou ainda, uma Cruzada Fascista, sei lá. E, como imaginar é de graça mesmo, aproveito a oportunidade para fantasiar uma luta entre os miniparamilitares e os tocadores de berimbau que eu tinha visto alguns passos antes. Uau!
Me afasto sentindo todo o peso do futuro que a política nos reserva. Imagino golpe, contragolpe, torturas, execuções, barricadas pelas ruas. Ao meu redor, a realidade vira um filme em preto e branco com civis estropiados em meio a ruínas. Bombas chovem do céu. “Estamos ferrados!”, digo ao amigo, que responde com um silêncio soturno. Ou talvez ele não tenha entendido o que eu disse. “Estamos ferrados!”, repito mais alto, só para ter certeza. Silêncio.
Eis então que decido: não vou dormir tendo pesadelos niilistas com juventudes radicalizadas em guerra num futuro necessariamente distópico. “Sou jornalista!”, digo pateticamente ao amigo. Dou um meia-volta, volver! e sigo em direção ao pelotão. Me aproximo e espero o sargento-mirim dar instruções a outro menino nerd que se junta às fileiras. Como se estivesse falando com uma autoridade de um metro e meio, pigarreio antes de perguntar, ou melhor, indagar: “O que é...? O que é...? Isso daqui?”. Gesticulo como se estivesse pintando uma tela surreal. Ou passando reboco numa parede imaginária.
O sargento-mirim abre aquele sorriso atrevido de quem acredita no personagem, estufa o peito e, todo orgulhoso, responde naquela voz que ainda sobe e desce sob influência dos hormônios da puberdade: “Isso daqui, senhor, é um curso preparatório para as Forças Armadas”. Ufa, mil vezes ufa, penso. Mas não digo. Tão mais emocionante (ainda que desesperadora) era a fantasia...!