No dia 16 de julho, o grande Ruy Castro, infelizmente cego em sua melancólica cruzada antibolsonarista, publicou a crônica “E aquela do Nelson?” – sua melhor crônica em muito tempo. E por um motivo: tirando o parágrafo introdutório, o texto é composto apenas por frases de Nelson Rodrigues. Frases que Ruy Castro acredita servirem perfeitamente para o Brasil mergulhado na tragédia fascista & outros exageros.
Sempre posso estar enganado, mas tenho cá para mim que Nelson Rodrigues riria da insistência dos intelectuais em mostrarem Bolsonaro e o bolsonarismo como forças retrógradas que devem ser detidas na marra. Ainda mais por um progressismo que se opõe à realidade como ideologia travestida de fé. Sim, fé. Afinal, poucos entenderam melhor as peculiaridades do conservadorismo à brasileira do que o autor de “Bonitinha, mas Ordinária”.
O que chama a atenção nas frases escolhidas por Ruy Castro é que, como todo aforismo genial, elas são ambíguas o bastante para funcionarem como uma espécie de frase-coringa. São, pois, citações ideais a serem usadas por qualquer um (direita e esquerda), a qualquer momento (agora ou depois), e contra quem quer seja o alvo (esquerda e direita). Inclusive por cronistas sem muita inspiração no dia. A satisfação é garantida. Se você acrescentar um “como disse Nelson Rodrigues”, tanto melhor. É como se o interlocutor pudesse ver seu QI subindo.
Pegue a primeira frase citada por Ruy Castro: “Outrora os melhores pensavam pelos idiotas. Hoje os idiotas pensam pelos melhores". É linda! E tem alguns elementos essenciais do bom aforismo, como ritmo, concisão e combinação de termos antagônicos. Gostaria de destacar um quatro elemento fundamental aí: o aforismo faz com que o leitor se sinta sempre entre os melhores, nunca entre os idiotas. E eu sei, você sabe, nós sabemos o quanto é difícil resistir a essa sensação de superioridade.
Aí Ruy Castro cita duas provocações caras ao Brasil contemporâneo. “O brasileiro tem suas trevas interiores. Convém não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro" e "Com o tempo e o uso, todas as palavras se degradam. Por exemplo: ‘liberdade’. Hoje, ‘liberdade’ é a mais prostituída das palavras". A primeira, se dita hoje em dia, seria lida/ouvida como frase de um petista. Já a segunda requer uma reflexão algo mais detida. Afinal, quem foi que corrompeu a liberdade a ponto de prostitui-la?
Aí Ruy Castro, malandrinho que só ele, usa Nelson Rodrigues para dizer que “o ‘homem de bem’ é um cadáver mal informado. Não sabe que já morreu”. Não satisfeito, no mesmo parágrafo ele cita ainda que “Não há no mundo elites mais alienadas do que as nossas” e “Hoje é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo”. Daqui do meu canto, só fico me perguntando como é possível que alguém leia essas frases sem fazer a devida autocrítica. Sim, todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo. Inclusive a pressão de sinalizar virtude se colocando contra o tal do “homem de bem”. O que Nelson Rodrigues não diz nessa coletânea, embora deixe claro na sua obra, é que é preciso resistir às pressões que nos levam à canalhice. Eis o busílis.
Depois disso, e como se dialogasse metalinguisticamente com as frases até então citadas, Ruy Castro paga um pedágio caro para a polícia ideológica (a mais canalha das polícias), mencionando uma frase, na verdade um longo raciocínio sem ritmo ou concisão, que acena para o movimento antirracista contemporâneo.
No último parágrafo, Ruy Castro conclui a sessão de psicografia com duas frases que bem podem ser usadas pelo bolsonarismo. Afinal, é impossível ler que “o Brasil deixou de ser o Brasil. Hoje estamos sendo esmagados pelo anti-Brasil” sem pensar na cena recente de Bebel Gilberto pisando na bandeira nacional, bem como na elite alienada dando as costas para os brasileiros que preferem o simplório Bolsonaro ao já testado, reprovado e condenado Lula.
Assim como é impossível ler que “quando os amigos deixam de jantar com os amigos por causa da ideologia, é porque o país está maduro para a carnificina” sem pensar nas décadas de divisionismo petista a que estivemos todos expostos. Esse divisionismo começou opondo ricos e pobres, depois passou a jogar brancos contra negros, héteros contra homossexuais, e assim por diante.
Sou obrigado a concordar com Nelson Rodrigues e, por extensão, com Ruy Castro: o divisionismo nos transformou em fratricidas em potencial. Não que eu acredite na carnificina literal, isto é, em golpe e contragolpe, guerra civil ou coisa que o valha. Mas, de fato, já vivemos uma epidemia de desejos de morte, uns explícitos e outros velados. E quando a gente deseja que nosso até ontem amigo (ou colega ou conhecido ou celebridade com a qual jamais dividiríamos a mesa) morra ou se cale ou desapareça da minha timeline é porque, em algum momento, cedemos à tentação utilitária da canalhice. Ah, esse Nelson...
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