Em “Encerramento”, Dave Chappelle banca o sacerdote profano para propor uma ideia revolucionária: e se reconhecêssemos que a vida é difícil para todos?| Foto: Reprodução
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Vi, revi e tresvi “Encerramento”, o mais recente espetáculo de Dave Chappelle. Não vou chamar de “stand-up” porque “Encerramento” é outra coisa. Digo, o comediante está lá, de pé e falando sem parar, mas as semelhanças entre “Encerramento” e, digamos, “Delirious” param por aí. Nem o objetivo, em teoria o riso, é alcançado da mesma forma. Aliás, me arrisco a dizer aqui que a graça que vi em “Encerramento” foi uma das mais tristes da minha vida. Mas eu a vi mesmo assim.

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“Encerramento” está mais para pregação. E digo isso como um elogio. Mas o caráter semirreligioso do espetáculo só é evidente da metade para o fim, depois de Dave Chappelle ter lançado petardos para todos os cantos, sempre com o suposto objetivo de transgredir a cultura do ultrapoliciamento do pensamento. Sem querer querendo, Chappelle deixa transparecer isso não numa piada, e sim numa fala de transição dita quase que à toa, quase como se ela nem devesse existir.

Chappelle se defende da acusação de ser um comediante dado a humilhar minorias – sobretudo os fragilíssimos transgêneros. Isso depois de, digamos, humilhar minorias com suas “palavras que ferem”. Numa dessas humilhações, por exemplo, Chappelle argumenta (argumenta!) que os trans costumam inventar palavras para ganhar discussões. Ninguém ri. Mas não importa. A afirmação foi feita e agora esse fato paira no ar. Sempre que você ler um neologismo trans (ou mesmo da velha esquerda) entenderá por que uma ideologia artificial precisa de uma linguagem igualmente artificial para se promover.

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Ops. Quase escapei aqui pela tangente. Mas fica aí o registro de que Chappelle entende que há muitas camadas nessa tragédia chamada “ideologia de gênero”. De volta ao rumo do texto, quero discorrer sobre a fala de transição que reflete o caráter semirreligioso dessa pregação disfarçada de espetáculo de comédia. A fala está ali, espremida entre piadas com trans em banheiros públicos e sobre racismo: “Não sou indiferente ao sofrimento alheio porque sei que é difícil para todo mundo”.

Para todo mundo. E nunca é difícil da mesma forma. O sofrimento é tão diverso que até gêmeos idênticos sofrem de jeitos diferentes. Curiosamente, é essa diversidade de sofrimento o que nos torna (ou deveria nos tornar) iguais. Meu sofrimento não é maior do que o seu, por mais que eu o sinta na pele e o considere insuportável às vezes. Da mesma forma, seu sofrimento, por mais que esteja estampado nas capas dos jornais, nunca é maior do que o meu, por mais silencioso que ele seja.

Quando você se dá conta de que todos, até mesmo aqueles que você considera os mais calhordas, têm uma história; quando você percebe que todos, até os mais corrompidos, professam as mais absurdas ideias como se fossem verdades porque realmente acreditam nelas; quando você olha em volta e nota que todos, até mesmo os que querem impor suas certezas sobre os demais, estão cheios de dúvida... é libertador.

Esse é o princípio da misericórdia. E é também o que torna “Encerramento” uma bela pregação de um pastor improvável. Uma pregação cheia de palavrões e envolto em imagens de um riso que flerta com o perverso, sem jamais conquistá-lo. Chappelle oferece a seus algozes o perdão que não lhe é dispensado. Porque sabe que é difícil. Para. Todo. Mundo.

Sacerdote de uma igreja muito própria (o que escrevi só para realçar a semelhança entre Chappelle e “chapel”), o comediante propõe que a comunidade trans, composta pelas pessoas mais frágeis e belicosas de uma civilização igualmente frágil e belicosa, se junte aos seus adversários (?) no riso de quem reconhece que é sábio gargalhar diante dessa tolice maravilhosa e misteriosa à qual damos o nome de “vida”.

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“LBGTQ, L-M-N-O-P-Q-Y-Z, acabou. Não vou mais contar nenhuma piada sobre vocês até ter certeza de que estamos rindo juntos”, diz ele ao encerrar a pregação. Não há, porém, ressentimento nessa promessa de silêncio. Há apenas o recuo sábio de quem sabe que o outro às vezes precisa de um tempo maior para descer da Torre de Babel e entender o óbvio.