Encontraram um cupido sob a parede da pintura “Moça lendo uma carta à janela”, de Vermeer.| Foto: Reprodução/ Wilkipedia
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Nunca tive crise de criatividade. Não vai ser agora, né? Na verdade, as ideias me vêm sempre aos borbotões. De tal modo que todos os dias bem cedinho me vejo encarando o abismo, na esperança de que o abismo também me encare e diga: vai, Paulo, escreve sobre isso. Ou aquilo.

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Há variáveis importantes nesse processo de decisão. A mais importante delas é, acredite se quiser, o leitor. O que despertará o interesse dele? Afinal, tenho que disputar o tempo do leitor com meus nobres colegas da Gazeta do Povo. A experiência me diz que os leitores estão interessados apenas e tão-somente em política. Mas volta e meia me permito dar uma extrapolada e oferecer aos leitores algo diferente. “Você não sabe o que está perdendo”, sussurro para a casa vazia assim que publico algo que destoe um pouco da crônica política.

Mas por que estou falando disso? Ah, sim. Porque tenho aqui ao meu lado uma pilha de textos começados, mas não concluídos. São textos que falam de várias coisas. Inclusive de política. Um deles, ainda cheirando a pão quentinho, argumenta que o bolsonarismo (assim como o antibolsonarismo e inclusive o petismo) há muito abandonaram qualquer nexo com a política e se transformaram em “movimentos de afeto”.

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O texto, porém, empacou depois de umas cinco linhas. Fiquei pensando que o leitor (que eu jamais subestimo, lembre-se!) poderia confundir a noção de afeto com alguma espécie de idolatria. O que estava e está muito longe das minhas intenções. Penso na relação de afeto entre povo e um político como algo a ser contemplado, e não julgado de antemão. Mas, como os ânimos estão exaltados e escrever mais do que nunca se transformou na arte de pisar em ovos, achei melhor deixar para outro dia. Um dia que provavelmente nunca raiará.

Moça lendo uma carta à janela

Aliás, já escrevi neste espaço que Bolsonaro é um personagem fascinante. E é mesmo. Uma pena tanta gente talentosa estar contaminada pelo antibolsonarismo tacanho e ignorar este fato: Bolsonaro é um personagem fascinante que, em tempos normais, renderia ótimos livros, peças de teatro e até músicas. Ou será que eu sou o único a ver nele essa complexidade inerente ao ser humano?

Da mesma forma, são fascinantes os apoiadores e detratores de Bolsonaro. Desde aquele que o chama de mito até o que acredita que ele é o maior genocida da história.  Imagine o quanto investem emocionalmente na política essas pessoas? Um investimento que antes era direcionado a outros temas, inclusive a Deus e a coisas ínfimas da vida, como a filatelia.

Igualmente fascinante foi essa história do cupido encontrado sob uma parede numa pintura de Vermeer. É uma notícia que passou despercebida e que viraria texto, mas não virou. Afinal, nem eu aguento mais insistir no argumento de que a vida é muito mais do que discussões em redes sociais. Além disso, a única coisa que eu teria a falar sobre o cupido é que ele muda completamente o entendimento da tela “Moça lendo uma carta à janela”. Algo que, reconheço, não interessaria a ninguém.

Assim como não interessou a ninguém a notícia de que, depois de 200 anos de procura, descobriu-se meio que por acaso um novo tom de azul. Isso mesmo: um novo tom de azul. O que diferencia o azul YInMn (este é o nome oficial da cor) dos demais azuis? Ele é mais estável (não desbota) e atóxico. Mas não era exatamente sobre o azul que eu queria falar, e sim sobre o fato de, nesse exato momento, haver milhares de pessoas pelo mundo empreendendo as buscas mais improváveis.

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Pense na lagosta

Agora, de todos os começos de texto que estão aqui empilhados e que por alguma razão esotérica não estou conseguindo desenvolver no momento, o que eu mais gostaria de ver um dia transformado em introdução-desenvolvimento-conclusão é o que versaria sobre uma frase de David Foster Wallace que você encontra na primorosa coletânea “Consider the Lobster”.

O trecho em questão diz o seguinte: “Nunca lhe ocorreu, contudo, que o motivo para a infelicidade dele era o fato de ele ser um babaca”. É uma frase simples, mas brilhante. Eu me lembro de tê-la lido numa época em que era muito infeliz e de, naquele instante, ter percebido que eu era o causador da minha infelicidade. Naquele período, minhas palavras (muitas das quais podiam ser facilmente enquadradas na categoria “babaca”) só reforçavam minha infelicidade, que por sua vez reforçavam a babaquice das palavras, que reforçavam a infelicidade. E assim por diante.

Adoro sobretudo a sutil possibilidade de perdão que a frase contém. Minha vida e minha relação com as pessoas mudaram muito depois que passei a reconhecer que, em geral, o outro está sendo babaca (agressivo, mal-educado, deselegante, espírito de porco e até panfletário) por causa de uma infelicidade crônica que não tem nada a ver comigo. Foi e é libertador.