Débora Rodrigues e a estátua manchada de batom: o que me pega é a vírgula isolando corretamente o vocativo.| Foto: Débora Rodrigues/ Arquivo Pessoal/ Joedson Alves/ Agência Brasil
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Se Débora Rodrigues, a cabeleireira condenada por Alexandre de Moraes a absurdos 14 anos de prisão e ao pagamento de uma multa de inacreditáveis R$30 milhões (ainda faltam os votos dos demais ministros), tivesse escrito “Fora, Bolsonaro!”, “Fora, Temer!” ou “Fora, FHC!” na estátua feiosa de uma Justiça que há muito abandonou o Brasil, hoje ela seria ministra do governo Lula.

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Se ela tivesse manchado a mesma estátua num protesto em defesa do assassinato de bebês no ventre materno, sua obra (chamada “instalação”) seria exposta nos maiores museus do mundo como uma pièce de résistance do feminismo.

Sovaco peludo

Se a cabeleireira de Paulínia tivesse diploma de sociologia, os cabelos coloridos, o sovaco peludo e usasse linguagem neutra, era capaz ter seu nome incluído no Panteão da Pátria e da Liberdade, ao lado de Zuzu Angel, Miguel Arraes, Abdias do Nascimento e, por que não?, Marighella.

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Se ela não tivesse sido tão espirituosa e não tivesse usado correta e lindamente aquela vírgula para isolar o vocativo na frase pouco civilizada de Barroso, já estaria eleita para a Academia Brasileira de Letras.

#SomosTodosDébora

Se a cabeleireira e mãe fosse uma black bloc munida de rojão e apontasse esse rojão para a cabeça de um cinegrafista numa daquelas megamanifestações de 2013, é bem capaz de agorinha mesmo milhares de jovens estarem saindo às ruas clamando pela liberdade dela.

Se Débora fosse de esquerda, Janja já teria dado o sinal para a milícia subir a hashtag #SomosTodosDébora e Tabata Amaral começaria seu discurso na Câmara com “Débora, presente”.

Livro, filme, série

Se em vez de pichar “perdeu, mané” no granito frio e burocrático da escultura de Alfredo Ceschiatti (grande expoente da arte a favor) ela tivesse esfaqueado um candidato de direita, Débora Rodrigues teria acesso aos melhores advogados do Brasil, contaria com o apoio da OAB, seria julgada em 1ª instância, teria direito a apelações sem fim, etc.

Se tivesse planejado a morte dos pais ou esquartejado o marido, sua história teria virado livro, filme e série exaltando a luta contra os opressivos valores da família tradicional brasileira – sem falar no patriarcado e, se calhar, até no racismo estrutural.

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Débora/ guerreira/ do povo brasileiro

Se ela tivesse comandado ou simplesmente participado de um grande, enorme, gigantesco esquema de corrupção, neste momento haveria hordas diante da prisão gritando “Débora/ guerreira/ do povo brasileiro”.

Se Débora tivesse sequestrado e mantido sob a mira de uma arma o embaixador norte-americano ou suíço ou japonês ou alemão em troca da liberdade de perseguidos políticos, sua história teria virado filme e best-seller. Ainda mais se ela aparecesse com tanguinha de crochê na praia.

Vítima da sociedade

Se ela traficasse drogas e fizesse parte de uma das facções que dominam o crime no Brasil, não só já teria recebido uns dez habeas corpus e outros tantos “de reserva”, como também seria tratada como vítima da sociedade pelos intelectuais que hoje a chamam de golpista.

Se fosse casada com um corrupto confesso, desses que hoje posam de influencers e, no conforto de suas impunidades, dão dicas culturais, ela teria direito a prisão domiciliar (com direito a visita da revista Caras e tudo) e a ver seus filhos crescendo.

Se

Se Débora Rodrigues, cabeleireira, tivesse se contentado com sua condição de mulher alienada, no máximo uma espectadora de telenovela incapaz de entender a complexa conjuntura do país;
se tivesse contido a indignação pela eleição do descondenado e a interferência do STF na vida política do país;
se não tivesse acreditado na interpretação equivocada do tal artigo 142;
se ao menos não tivesse dado ouvidos a quem lhe ensinou que “o poder emana do povo” e que a Constituição lhe garante o direito de se expressar livremente;
se não tivesse acreditado que vivemos numa democracia;
se não tivesse se inspirado em manifestações anteriores, muito mais violentas e sem consequências para os manifestantes (todos de esquerda, claro)...

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Mártir e símbolo

...hoje ela não estaria presa e praticamente condenada, e sem direito a apelação!, a se tornar mártir e símbolo da tortura e da intimidação perpetradas justamente por aqueles que deveriam proteger o cidadão comum, as cabeleireiras, faxineiras, donas-de-casa, corretores de seguro, agricultores, cuidadores de idosos, pastores e comerciantes do mundo, do poder infinitamente maior do Estado.

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