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Foi ali, em meio a manifestações de carinho e os xingamentos sem sentido de sempre, que descobri ele: o denunciante, o dedo-duro, o alcaguete, o delator, o X9. Só não me perguntem o nome, porque como todo denunciante este de que falo prefere o anonimato covarde. No afã de entrar para os anais do dedodurismo como o “cidadão exemplar”, recebendo do Estado o elogio do pai que lhe falta na vida real, ele não se furta ao autoelogio e à onipresente crase errada antes de marcar Alexandre de Moraes e Flávio Dino numa publicação que "incita à (sic²) golpe".
É nesse momento que abandono o texto e saio para dar uma volta pelo quarteirão. Há vida nas biroscas aqui por perto. Homens conversando animadamente ao redor de uma única e civilizada garrafa de cerveja. A comerciante que vende seu peixe no armarinho – por assim dizer. Do outro lado na rua, na lanchonete, risadas. Na lotérica, sonhos são compartilhados enquanto se preenche os volantes. Na banca de revistas, um velho compra palavras-cruzadas.
São pequenos momentos da vida cotidiana, marcados todos por relações de confiança, nas quais a gente raramente presta atenção. Milagres, direi um tanto quanto exageradamente, evocando o igualmente exagerado Chesterton, para quem a grande tragédia do tempo dele era o incomum que se perdia em meio ao ordinário, por falta de espectador. No caminho de volta para casa, os milagres da confiança mútua se sucedem: o taxista que respeita a preferencial, o garçom que cobra a conta só depois que a comida é consumida, o dono do mercadinho que não confere a veracidade da cédula de R$10.
De volta ao simulacro de vida das redes sociais, contudo, a “realidade” é diferente. Ou melhor, oposta. Ninguém pode ter certeza de que as regras do debate caótico serão respeitadas. A vida virtual não pressupõe qualquer virtude no amiguinho ao lado. “Obrigados” são lidos com desconfiança e cinismo. Os lugares-comuns fazem as vezes de argumentos profundos e irrefutáveis. O objetivo não é a convivência, e sim a desumanização e, por meio dela, a vitória numa guerra abstrata, sem qualquer recompensa. Cada qual protegendo seu ego, suas certezas alicerçadas na areia, sua autoimagem em geral contraditória.
Imediatamente me lembro de uma conversa que tive recentemente com um amigo, na qual tentava explicar a ele o clima de belicosidade que impera no debate público. Acho que citei até o livro “O Fim do Homem Soviético”, de Svetlana Aleksiévitch, e se não citei na ocasião agora me redimo. “As pessoas têm medo do vizinho. Do primo. Do colega de escola ou de trabalho. Têm medo de estarem ao lado de um nazista ou de um comunista. Inconscientemente, têm medo de acabar numa vala comum, traídos (isto é, denunciados) por alguém próximo”, expliquei. Ao que o amigo sabiamente respondeu que o medo, ah, o medo é um demônio muito mais ardiloso e, portanto, perigoso do que o ódio. Ou do que as pessoas entendem por “ódio”.
De volta ao alcaguete que quer me ver pelas costas, por um instantezinho me pergunto se faria alguma diferença mostrar a ele as palavras do político e diplomata francês Alain Peyrefitte, que disse que “o elo social mais forte e mais fecundo é aquele que tem por base a confiança recíproca – entre um homem e uma mulher, entre os pais e seus filhos, entre o chefe e os homens que ele conduz, entre cidadãos de uma mesma pátria, entre o doente e seu médico, entre os alunos e o professor, entre um prestamista e um prestatário, entre o indivíduo empreendedor e seus comanditários – enquanto que, inversamente, a desconfiança esteriliza”. Concluo que não faria diferença, mas deixo separado o trecho para usar num texto. Neste.
A quebra de confiança entre as pessoas é uma desgraça. E é uma chaga maldita (mais uma!) dos totalitarismos envergonhados ou escancarados, e da “cruzada democrática” empreendida por Alexandre de Moraes e os seus. Ao contrário de unir, o xisnovismo nascido da desconfiança estimula a ruptura. Até porque a única forma de o denuncismo unir seria pela eliminação total dos “marginais” e pela consequente formação de uma sociedade utopicamente homogênea. A quebra de confiança entre as pessoas, estimulada pelo dedodurismo, destrói a democracia no que ela tem de mais belo e alcançável: a convivência razoavelmente pacífica entre os diferentes.