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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Como passar o Dia dos Pais ao lado de Shakespeare e… Thammy Miranda

O que é a campanha publicitária envolvendo Thammy Miranda senão o uso comercial do luto, da traição e do medo que todos carregamos dentro de nós? (Foto: Reprodução/ Twitter)

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Você talvez não saiba, mas os publicitários sabem muito bem: seu ódio é muito mais valioso do que qualquer simpatia que você possa nutrir por um produto ou marca. Aliás, de acordo com as regras mefistofelesiana que regem esse tipo de raciocínio, também o ódio que você possa vir a sentir por quem sente ódio é valioso. E quanto mais extremo é esse ódio, melhor.

E é por isso, e não por amor à diversidade, à tolerância, ao coraçãozinho feito com as mãos ou aos Ursinhos Carinhosos que os publicitários decidiram usar o Thammy Miranda (e Thammy Miranda se deixou usar) numa peça publicitária de Dia dos Pais de uma marca de cosméticos. Eles sabem que isso vai despertar a ira dos conservadores, que por sua vez despertará a ira dos progressistas. Ira por ira, enquanto isso a marca de cosméticos fica gravada na mente das pessoas.

Mas digamos que você seja uma pessoa de opiniões fortes. E que simplesmente não consiga ficar alheio à polêmica da vez. Digamos que a presença de Thammy Miranda numa propaganda para o Dia dos Pais lhe cause repulsa. Ou então uma vontade irreprimível de esfregar a ideologia de gênero na cara da sociedade patriarcal. Digamos que você se incomoda tanto que sente vir lá de dentro, do âmago, aquela vontadezinha de boicotar a marca. Ou que você fica tão alegre por ver sua utopia trans se realizando que vence a ojeriza que nutre pelo capitalismo, liga para o seu corretor e o manda comprar ações e mais ações da empresa – afinal, uma empresa tão boazinha assim merece ter seus papéis valorizados.

Neste caso sugiro que, por um instante, antes de sair vociferando nas redes sociais contra a marca ou contra Thammy Miranda e antes de sair brigando com o amiguinho porque ele não consegue entender esse futuro colorido de fluidez sexual, você dê uma chance a Shakespeare. Mais especificamente a Hamlet.

(Tá, eu sei que não vai acontecer. Mas eu tento).

Construção do homem

Muitos já escreveram melhor e mais exaustivamente sobre Hamlet. Meu objetivo não é fazer a interpretação definitiva da peça. Aqui só pretendo explicar por que você deveria abandonar toda e qualquer discussão sobre Thammy Miranda como Pai do Ano neste domingo e se dedicar a, por um dia apenas, responder à pergunta fundamental proposta por William Shakespeare há 400 anos.

Hamlet é uma peça sobre a construção do homem – do ser de sexo masculino que um dia virá a se tornar pai. Pai não necessariamente de uma criança, e sim de todo um mundo que o cerca. Pai das amizades que nascem de seu papo bom. Pai do produto de seu trabalho. Pai das consequências de todos os seus atos. Daí por que ouvimos com alguma exasperação os sapientíssimos conselhos de Polônio ao filho, Laertes, que começam justamente com “não dá voz ao que pensares, nem transforma em ação um pensamento tolo”.

O drama de Hamlet é o drama de todos os homens com nossas crias, isto é, com tudo de que somos pais. Mas o príncipe não enxerga isso. Ele ainda se vê como criatura, não criador. O fantasma que ele enxerga nada mais é do que a manifestação dessa transição. Eis porque o rei-tio usurpador lhe diz que sofrer a morte de um pai é legítimo, mas “insistir na ostentação de mágoa é teimosia sacrílega; lamento pouco viril, mostra uma vontade desrespeitosa ao céu, um coração débil, alma impaciente, mente simplória e inculta”.

E a questão do “ser ou não ser” é muito mais do que um bordão que atravessou os séculos. É a síntese mais que perfeita das dúvidas que afligem o jovem príncipe Hamlet, enlutado pela morte do pai, se sentindo traído pela mãe e ameaçado pelo tio, agora rei. E é também a síntese de uma dúvida que nos assola todos os dias, assim que abrimos os olhos, porque todos carregamos conosco no mínimo um luto, uma traição e um medo.

Tolstói, que não gostava nem de Shakespeare nem dessa peça específica, achava a questão hamletiana, e sobretudo a resposta que o príncipe dá a ela, uma enorme de uma tolice. Compreende-se. Primeiro porque, levando em conta o próprio ímpeto juvenil, “não ser”, isto é, abdicar da possibilidade de agir, independentemente das consequências (“no princípio era o Verbo”), estava fora de cogitação. E depois porque, já no fim da vida, Tolstói se dedicou a pregar a não-ação como um princípio fundamental para a cristandade.

Mas se o próprio Tolstói tivesse optado pelo não-ser, isto é, pela inação, pela obediência, pelo silêncio, não teríamos Guerra e Paz ou Anna Karenina. O não-ser é estéril. Se por um lado ele impede que derramamentos de sangue sejam cometidos em nome da vingança (ou da justiça), também impede a contemplação da beleza e a forja do caráter. Acordar todos os dias é optar sempre por ser.

Ninguém nunca disse que se tratava realmente de uma escolha.

Mas o que isso tem a ver com Thammy Miranda?

O que são as redes sociais senão uma representação interminável dos dramas do reino da Dinamarca (onde “há mais coisas do que sonha sua vã filosofia”)? E o que é uma campanha publicitária como essa envolvendo Thammy Miranda senão o uso comercial do luto, da traição e do medo que todos carregamos dentro de nós?

Thammy é, independente do gênero, pai de seus feitos. De todos os valores que ela/ele expressa. Da mesma forma, os publicitários são, neste caso, pais do ódio, assim como Hamlet é pai do louco assassino em que se transforma na cena final e eu sou pai deste texto.

Aliás, é disso que se trata Hamlet. Com a peça, Shakespeare praticamente implora para que o leitor/espectador se veja como pai e responsável por todas as suas ações. Por todas as suas palavras. Por todas as alegrias que venha a causar, mas também por todas as tragédias. Somos pais e responsáveis tanto pela compaixão quanto pelo ódio que despertamos uns nos outros.

[Se você gostou deste texto, mas gostou muito mesmo, considere divulgá-lo em suas redes sociais. Agora, se você não gostou, se odiou com toda a força do seu ser, considere também. Obrigado.]

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