Vish. Nem te conto. Meu texto sobre as desconfianças em torno do transplante de coração a que foi submetido o ex-apresentador Faustão deu o maior xabu entre amigos e familiares. Uns me xingaram (carinhosamente, suponho) de hipócrita; outros de ingênuo. E houve quem me chamasse de hipócrita e ingênuo por eu ter dito que talvez (talvez!) tenhamos perdido a capacidade de viver num país habitado por pessoas na maioria honestas.
Em meio aos insultos, porém, percebi um padrão lógico interessante. É que aos impropérios se seguia sempre uma mesma pergunta feita em tom indignado, dedo em riste e algumas muitas oitavas acima do civilizado: Ah, Paulinho! Vai me dizer que no lugar do Faustão você não pagaria para furar a fila?!
Apesar da agressividade e do cinismo embutidos na pergunta, ela é boa porque nos obriga a exercitar aquela palavrinha que foi vulgarizada durante a pandemia e que hoje anda meio esquecida, coitada. Me refiro à empatia, que significa nada mais nada menos do que se colocar no lugar do outro antes de julgá-lo ou sobre ele emitir uma opinião. Então vamos lá!
Se você fosse muito rico e tivesse 73 anos aparentemente bem vividos. Se você fosse famoso a ponto de um cronista de província chamá-lo de “ícone da cultura popular”. Se você se visse obrigado a passar por um transplante de coração. Se alguém lhe sussurrasse que, por uns poucos milhões de haddads, era possível dar prioridade ao seu caso, isto é, colocá-lo em segundo lugar numa fila de transplantes cheia de outras pessoas necessitadas de um coração seminovo. Enfim, se você pudesse corromper para se salvar, o que você faria?
Calma. Não precisa responder agora. Pensa aí que enquanto isso eu fico aqui assobiando e olhando para o teto, fingindo desinteresse por todas as caras e bocas que você está fazendo diante desse dilema. Um dilemão do Faustão. Não precisa ter pressa. Procura bem no baú das suas bases morais, fuça nas lembranças do que um dia lhe disseram sacerdotes ou sábios. E confronta tudo isso com o simples prazer e privilégio de estar vivo, de sentir o pulmão se enchendo de ar e o coração batendo numa linda tarde de sol como a de hoje.
Pronto?
Depois de pensar muito e soltar um ou dois “ô loko, meu!” ao longo do processo, minha resposta continua sendo a mesma de antes: não corromperia para me salvar. Não corromperia se fosse rico, famoso e tivesse 73 anos e continuaria não me corrompendo na condição de remediado, anônimo e com os 45 anos já começando a pesar sobre as costas.
É uma resposta que nasceu instintiva, baseada na noção natural do que é certo e errado, mas que agora vai receber o reforço de um versículo do Evangelho de S. Marcos (8:36): “Pois, de que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”. Reconheço, porém, que se trata de uma resposta hipotética, sedimentada em bases morais e religiosas aplicadas a um exercício de imaginação. Na hora agá (toc, toc, toc) é possível que eu hesitasse.
Complicador
Em meio às discussões sobre o Dilemão do Faustão, surgiu logo um complicador que, sem querer abusar da sua paciência, mas já abusando, vou expor aqui. E se em vez de corromper para salvar a si mesmo você tivesse a oportunidade de corromper para salvar um ente querido? A esposa/marido. A mãe/pai. A filha/filho. O que você faria nessa situação?
Continuo firme em minha disposição de não corromper. Mas enquanto você pensa aí, aproveitarei para cometer a loucura de reproduzir as palavras do professor de comunicação (!) Pedro Burgos. Que, pelo Twitter, comentou a desconfiança em torno do transplante de coração de Fausto Silva e escreveu que:
“Ser cético é bom, claro. Mas o excesso de ceticismo vira facilmente cinismo. E uma sociedade que nunca acredita em boas intenções é uma sociedade que simplesmente não funciona. Engana-se quem acha que não há um custo alto para toda essa desconfiança”.
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