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Tenho um amigo chamado Fábio que é a pessoa mais pé-no-chão que conheço. Tranquilo, simpático como um gordo de antigamente e dado ao deboche, ao longo dos últimos anos ele nem sabe, mas me ajudou muito contendo as exaltações do meu sangue dramaticamente russo. “Isso aí não vai dar em nada” era o bordão que ele usava para responder aos meus devaneios hiperbólicos. Hiperbolicíssimos.
Ontem Fábio me ligou. Mas já no “alô” percebi que havia algo de errado ou talvez até de muito errado com ele. Comigo. Com o país. “Cara, você tá vendo tudo o que o Lula tá fazendo?”, perguntou ele com seu sotaque caricatural de paulistano. Só faltou o “mêu” no final. Sem nem esperar por minha resposta, Fábio emendou: “Alteração do Marco do Saneamento, neta do Marighella na Funarte, decreto de desarmamento, desistência de entrar pra OCDE, discursos com 'todos, todas e todes', fim da Secretaria de Alfabetização. A gente tá lascado”, disse ele, que é avesso a palavrões.
Nessas horas é que a gente vê como são as coisas. Depois de tantos anos me aproveitando do efeito calmante da fabiosofia, senti que era a minha vez de retribuir com palavras que o tranquilizassem um pouco. O problema é que essas palavras me faltaram ontem e me faltam hoje. A única coisa que consegui dizer foi que tinha visto todas as coisas que ele mencionara e mais uma: a criação de uma tal de Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia. Ou simplesmente Ministério da Verdade Petista. "Que pesadelo!", comentei à toa, irmanado num pessimismo que me é estranho.
“Eu sabia que seria ruim e até imaginava que o Brasil poderia se tornar uma Argentina rapidinho. Mas, do jeito que tá, acho que até o fim do ano teremos virado uma Venezuela”, disse ele. O Fabio. O fleumático, impassível, tranquilo, manso, pacato e quase-zen Fábio. A mim só me restou concordar e tocar um tango argentino. Mas não sem antes dar vazão ao meu lado mais catastrófico (aquele que tento esconder de todo mundo): “Vou almoçar enquanto tem comida”.
Inferno
Foi o que fiz. Só que, diferentemente do almoço a jato de todos os dias, desta vez fiz questão de comer ritualisticamente. Preparei o prato farto, mas não extravagante. Me sentei à mesa. E rezei. Agradeci pelo arroz, pelo feijão, pela farofa e pela carne. Saboreei cada garfada como se fosse a dádiva que de fato é, mas para a qual o cotidiano de pressa e abundância não me permite dar o devido valor.
Uma vez satisfeito, recorri ao estoicismo das minhas leituras de Sêneca e Marco Aurélio. Imaginei o pior cenário (i.e., uma mistura de Venezuela, China e Coreia do Norte) e, com algum esforço, me senti capaz de enfrentá-lo e até de sobreviver a ele. E foi assim que, tomado por uma paz absurda, tive pena daqueles que ontem fizeram o L, hoje estão comemorando a guinada radical de Lula à esquerda e amanhã certamente sofrerão também as consequências de um eventual colapso do país.
“Como é mesmo aquela passagem da ‘Divina Comédia’?”, perguntei para a Catota, que se empanturrava de ração. Fui até a estante e abri o livro no Canto V, no qual a adúltera e lasciva Francesca diz que “não há tão grande dor qual da lembrança de um tempo feliz, quando em miséria”. Poucas definições de inferno são mais pungentes do que essa. E, no entanto, talvez pela soberba de uns e estupidez de outros, talvez este seja o inferno que nos caberá suportar pela eternidade que durar o lulopetismo.