São muito os aspectos imorais da história que, sem trocadilho ou com trocadilho, seduziu o Brasil nesta semana: a do mendigo flagrado em ato libidinoso com uma mulher de classe média dentro de um carro. Para piorar, quem surpreendeu os dois amantes foi o marido que, à moda antiga, deu uns tabefes no Don Juan socialmente desprovido. Como sói acontecer em tempos de Grande Irmão, tudo foi devidamente filmado e expostos nas redes sociais.
O mundo cão, acho que já disse por aqui, não me interessa. Quando me vejo obrigado, por dever profissional, a prestar um pouco de atenção a ele, tento guardar uma distância intelectual, moral e olfativamente segura. O mundo cão, para mim, é como aquele vira-lata caramelo de olhos tristonhos que você acaricia apenas na imaginação, com medo de pegar pulga, sarna ou, pior ainda, raiva.
Minha colega Madeleine Lacsko já explorou bem os aspectos absolutamente repreensíveis da exploração jornalística do caso. Por um lado, trata-se a tentativa desesperada de conquistar a atenção dispersíssima dos usuários de redes sociais. Por outro, é a irresistível tentação do combo pornografia + luta de classes que mexe com o imaginário de um público acostumado a consumir o miojo-com-vina do noticiário.
Numa semana marcada pela violência pornográfica da guerra, por ministro do STF traindo desavergonhadamente princípios jurídicos e por Geraldo Alckmin expondo a impudicícia de sua ambição e a indecência de seu oportunismo político, o caso do mendigo conquistador me chamou a atenção por trazer a discussão sobre esse Zeitgeist de devassidão para o mundo muito real. (Tem muito eco nessa frase, né? Vou fingir que é intencional e dizer que é estilo).
O adultério envolvendo duas pessoas de classes sociais distintas ajudou, inclusive, a atiçar deliciosos e inócuos preconceitos que a sacanagem jurídica tenta eliminar por meio da canetada. A própria palavra “mendigo”, obrigada a pedir esmola para aparecer em textos de uns poucos cronistas politicamente incorretos, voltou à boca do povo em toda a sua glória, legando ao limbo dos ofícios, memorandos, pareceres e portarias os detestáveis “morador de rua” ou “pessoa em situação de rua”.
Da imoralidade em si também dá para se tirar alguma lição útil a uma geração acostumada à amoralidade ou, na melhor das hipóteses, ao relativismo. Era justamente isso o que Nelson Rodrigues fazia com seus contos e peças de teatro. Talvez seja o otimismo de outono (sou desses), mas vejo com bons olhos o fato de o adultério estar sendo visto pelo ridículo que é. Um ridículo que causa sofrimento e que jamais deveria ser visto como “normal” ou um vício “inerente à natureza humana”.
Isto é, apesar das décadas de romantização do personagem, Don Juan não tem nada de admirável. É um mendigo moral que pode até ser esperto e muito eficiente em seus esforços de sedução. Mas o objetivo final de um Don Juan é a satisfação de um prazer fugaz que não compensa o sofrimento causado. Ele vai dizer que "foi por amor" ou "foi pelo bem comum" ou ainda que "foi em defesa da democracia". Mas só acredita quem já está predisposto a se deixar seduzir por explicações fáceis e doces.
Nelson Rodrigues sabia muito bem que a devassidão pequena do sexo casual feito dentro de um carro e com um mendigo é o que explica e inconscientemente sustenta a devassidão maior, a devassidão das ideias, a devassidão das corriqueiras traições políticas – e jurídicas, convém agora acrescentar. Porque no fundo as duas devassidões têm uma origem em comum: o desejo de saciar rapidamente vontades que uma consultinha rápida ao bom senso seria capaz de reprimir.
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