É grave. Muito grave. Semana passada escrevi a crônica “Imagine que você é a Janja” e fui ligeiramente surpreendido por uma torrente de comentários que alternavam xingamentos e a recusa franca ao exercício que eu propunha: o de que o leitor se colocasse no lugar da primeira-dama, a fim de compreender a sequência de gafes que a senhora de 57 anos cometeu nas últimas semanas, meses, anos.
O texto nasceu da imagem que o ilustrava, e que mostrava Janja no corredor de um avião. Ao redor dela, centenas de cestas básicas estavam afiveladinhas em seus lugares. Na hora pensei: “E não é que a Janja virou aeromoça de solidariedade?!”. Para logo em seguida emendar outros dois pensamentos em forma de pergunta: “O que leva uma pessoa a se prestar a esse papel?” e “Será que ela não tem nenhum amigo para lhe dar um toque?”
No processo de tentar entender o que levava Janja a agir como uma mulher deslumbrada em meio àquela que já está sendo considerada a maior catástrofe natural do Brasil, tentei me colocar no lugar dela. E foi aí que percebi que o exercício óbvio de empatia é bastante terapêutico. Mas para que o leitor entenda isso vou precisar pedir que ele (você!) releia o texto sem o impulso da raiva.
Pode ir lá que eu espero. Sem pressa. Ah, e uma dica: preste bastante atenção ao segundo parágrafo. Aquele que fala das concessões que fazemos, dos atalhos que pegamos, dos sapos que engolimos, das mentiras nas quais fingimos acreditar, dos cálculos errados e das fantasias de poder. E, se não for pedir muito, nessa parte aí das noites perdidas em fantasias de poder, inclua também as fantasias de felicidade e sucesso.
Trapos morais
Leu? Entende agora por que escrevi isso? Não foi apenas para você ter uma oportunidade de expressar sua raiva em relação à primeira-dama mais rejeitada da história. Digo, embora reconheça o valor terapêutico de extravasar essa indignação que nos consome, a terapia que proponho em “Imagine que você é a Janja” é outra: a de reconhecer na Janja a humanidade de alguém que (atenção para a referência à “Odisseia”!) não se amarrou direito ao mastro da dignidade humana e, em se deixando levar pelo canto das sereias comunistas, agora se vê afogada num mar de críticas e zombarias.
Ou, para usar uma imagem que me é pessoalmente muito cara, a de ver na Janja a figura trágica da filha pródiga. Isto é, de uma mulher (uma senhora!) que, seduzida por delírios de grandeza, saiu de casa e hoje vive na miséria típica daquelas pessoas que não enxergam que seus vestidos caros são trapos morais. Só não vá você, leitor, bancar o filho mais velho, hein! (Lucas 15:11-32).
Poder, felicidade, sucesso
Mas eu dizia que o exercício de se colocar no lugar do outro, de imaginar que você é a Janja (ou o Lula ou o Alexandre de Moraes ou o Bolsonaro ou qualquer um que você tenha por inimigo, adversário ou desafeto), é terapêutico. E é, na medida em que também nos descobrimos falhos, fracassados, hipócritas e ridículos. Em resumo, mais-que-imperfeitos em nossa humanidade.
Porque, à semelhança da personagem, também nós fazemos concessões e pegamos atalhos e engolimos sapos e fingimos acreditar em mentiras que nos contam e calculamos mal nossas palavras e ações e nos perdemos em fantasias de poder, felicidade e sucesso. Não porque somos especialmente maus, e sim porque a imagem que fazemos do “paraíso alcançável”, aquele combo de poder + felicidade + sucesso, está profundamente corrompida.
Não, poder não é escolher entre resgatar uma pessoa e um cavalo. Não, sucesso não é ser primeira-dama nem viajar com tudo pago no cartão corporativo. Muito menos ser amiguinha de celebridades pop. Não, felicidade não é se sair vitorioso numa disputa ideológica, nem tripudiar sobre a derrota dos seus inimigos. E, no entanto, Janja e muita gente à esquerda e à direita acreditam justamente que poder, felicidade e sucesso sejam essas coisas todas.
Posso estar errado (e provavelmente estou), mas tenho cá para mim que todas essas cenas ridículas protagonizadas por Janja são um pedido de socorro que poucos estamos dispostos a ouvir. Resta saber se, uma vez cercada por esses símbolos falsos de um poder também falso, de uma felicidade infeliz e de um sucesso fracassado, Janja aceitaria a mão que alguém viesse a lhe estender. Ou se rosnaria e morderia e diria “me deixe em paz”. Uma paz que, só para continuar com as contradições em termos, é puro caos.
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