Meu queridíssimo Supremo Tribunal Federal nunca decepciona. Ano após ano, as decisões esdrúxulas e heterodoxas se avolumam. E a gente fica primeiro boquiaberto, depois revoltado. A gente esperneia e, por um tempo, esfrega metaforicamente a Constituição na cara dos Ministros. Como se eles fossem entender. Como se eles já não entendessem muito bem o que estão fazendo.
Aí vem aquele período de apatia que culmina em resignação. Somos impotentes contra a tirania de todas as instituições do Estado, mas contra o STF somos mais impotentes ainda. Afinal, os ministros estão lá, em teoria, para nos proteger da tirania do Legislativo e do Executivo. O que ninguém imaginou é que a instituição antitirânica por definição fosse, também ela, ceder à tentação do poder desmedido.
Não invejo os ministros do STF. Gilmarzão com aquela carranca eterna. Lewandowski com evidente banzo de frango com polenta. Toffoli sem a menor ideia do que está fazendo ali. Carmen Lúcia querendo ficar em paz, ouvindo um Caê. Marco Aurélio ensaiando um rap. O dinheiro pingando religiosamente na conta. Motorista. Viagens. Aquela lagostinha nossa de cada dia.
Mas tudo tem um preço. E o preço que os ministros pagam por seus privilégios é a própria honra. Vou te falar: tem gente que paga o mesmo preço e recebe muito menos em troca. Então talvez os ministros do STF estejam no lucro. Ah, a quem estou querendo enganar? Eles estão sempre no lucro.
Gregor S. acordou ministro
Imagino uma releitura kafkiana desse pesadelo. Pegue o calouro do STF, o ministro Kassio Nunes Marques, conhecido entre os rappers como Kássio Conká. Num dia ele estava lá, todo pimpão, curtindo a vida, escrevendo uma mesóclise aqui, um latinzinho ali. Não conheço o ministro Nunes Marques, mas, como minha imaginação ainda é livre, permito-me vê-lo como um homem que, diante do espelho, e a despeito do que possa dizer seu currículo, de vez em quando tem dúvidas sobre seu lugar e papel no mundo.
Aí, num dia qualquer, ele se vê transformado em ministro lá no meio do cerrado -e desprovido da sabedoria de um Riobaldo – ,tendo de decidir algo tão trivial que até o Tião, meu cabeleireiro, entende: a constitucionalidade ou não da reeleição para a presidência das casas legislativas. Nunes Marques olha para um lado, olha para o outro. Sério mesmo que estão questionando isso? Não é possível.
Ele vai lá e pega o livrinho na estante. Capa horrível, por sinal. Abre no Artigo 57, não sem antes pensar “57 artigos é muita coisa!”. E lê: “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.
Nunes Marques olha para um lado, olha para o outro. Dá uma risadinha. Não é possível que estejam questionando o azul do céu, a fórmula da água, a aritmética dos dedinhos! Mas estão. Depois de devolver o livro à estante (ao lado de "A Sutil Arte de Ligar o F*da-se" – detalhe que não escapou à minha imaginação traquinas), ele se põe a refletir sobre cada uma das palavras contidas na frase escrita aos soluços (olha o tanto de vírgula!) por um burocrata qualquer todo orgulhoso de sua mesóclise rococó.
Ao longo do processo, ele se lembra que dia 1º de fevereiro é aniversário da tia Marisa. Nunes Marques para na palavra “membros” e ri com saudade dos amigos da 5ª série. Ao avançar para “Mesa”, maldiz o burocrata que tinha mania dessas maiúsculas. E para quê especificar “dois” depois de “2”? Que tipo de gente confunde 2 com “quatro?! E finalmente chega ao particípio horroroso, mas preciso e inconfundível: “vedada”.
Libertário demais
O ministro Kassio Nunes Marques, juntamente com seus colegas, terá de decidir o indecidível. Eles terão de encontrar nas entrelinhas de um artigo claro teorias quase místicas para justificar a possibilidade de recondução ou não de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre a seus cargos de presidente da Câmara e do Senado. E para quê?
Para satisfazer a projetos pessoais de poder, a interesses pequenos, a lagostinhas e lacaios para abrirem portas. Para saciar a fome de prestígio de dois homens que, percebe-se de cara, não eram os primeiros escolhidos na pelada do recreio. Para causar no homem comum um revertério desnecessário, o ácido subindo pelo tubo digestivo, queimando tudo com a raiva impotente de quem só queria que a lei fosse cumprida.
Ou para fazer festinha no próprio ego, na esperança de obter algum tipo de reconhecimento paterno por um ato de rebeldia: “Olha aqui, papai Ulisses, substituí todas essas palavras aí da sua Constituçãozinha pelo arbítrio puro e simples”. Ao que o papai-Estado responde que pagou pelo curso de Direito do transgressor jurídico e, por isso, merece ao menos saber como ficou a redação final dessa patuscada.
Batendo o pezinho no chão, fazendo biquinho e com os olhos prestes a transbordar, responde o ministro imaginário, desesperado pela aceitação do Estado. “É proibido, mas se quiser pode”, lê. Só para ouvir do papai-Estado que está bom e serve para esta ocasião específica que beneficia seus amigos Maia e Alcolumbre.
“Mas está libertário demais. Tem que meter umas proibições aí. Mais tarde. Quando convier”, diz.
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