Uma pena a literatura não despertar nos leitores de hoje o mesmo interesse que a mais recente opinião furada da tal de Belle Belinha [nota para o leitor do futuro, isto é, daqui a uma semana: Belle Belinha é uma moça que está famosa por beijar pessoas a esmo]. Uma pena para mim, que não escrevo tanto sobre o assunto, e uma pena para o não-leitor, que perde a oportunidade de ter uma compreensão mais ampla da política e da vida.
Sem a base literária, por exemplo, o título deste texto fica parecendo a provocação barata que, evidentemente, não é. A imagem proposta na pergunta é uma referência a “O Beijo no Asfalto”, peça de Nelson Rodrigues que eu tinha lido há quase trinta anos e na qual mergulhei no último fim de semana. Nunca vi uma montagem de “O Beijo no Asfalto” – e nem quero. Não há atores canastrões nem direção modernosa no teatro da minha cabeça.
Em “O Beijo no Asfalto”, um homem é atropelado por um ônibus quando, de repente, Arandir se aproxima, se abaixa e beija o moribundo. Na boca. Ai, que absurdo! Ai, o colunista virou militante LGBT agora! Calma, meu senhor e minha senhora. Não é nada disso. O beijo é um ato de misericórdia, não de lascívia, embora essa ideia pareça tão absurda a todos os personagens que só poderia terminar em tragédia mesmo.
“Era alguém! Alguém! Que morreu! Que eu vi morrer!”, explica um exasperado Arandir para Amado, o jornalista absolutamente antiético que não consegue, de jeito nenhum, conceber um mundo em que um só ato de amor misericordioso seja possível. Arandir, aliás, passa a peça toda explicando o gesto mal-interpretado, a caridade que aos olhos dos outros é luxúria. Ao redor dele, todos têm algum tipo de interesse na versão pecaminosa – a mais simples e aparentemente mais lógica. No entanto, em nenhum momento Arandir hesita ou muda a sua versão do ocorrido: foi um beijo de amor por um estranho que estava morrendo. Por mais estranho que isso possa parecer a mim, a você, a Selminha ou a Cunha.
Como vivemos tempos hiperpolitizados e minha imaginação já está contaminada, não teve jeito. Ao terminar o livro, fantasiei um dramaturgo contemporâneo que tivesse ousadia e talento, mas não originalidade, para escrever uma história na qual um bolsonarista mais bolsonarista do que o próprio Bolsonaro, ao se deparar com um petista (com direito a camiseta do Lula e boné do MST) moribundo, se abaixa e, diante de uma multidão atraída pela promessa macabra do atropelamento, o beija. Na boca.
No geral, a reação dificilmente seria outra que não a da versão original de “O Beijo no Asfalto”. Com uma diferença que talvez seja fundamental: parte do público apontaria o dedo para “acusar” o homossexualismo do bolsonarista e, logo em seguida, chamar de homofóbico qualquer um que insistisse nessa interpretação homoafetiva. No lugar de manchetes gritando o escândalo da sodomia, veríamos reportagens com títulos supostamente imparciais, acusando o bolsonarista e o petista de alguma espécie de relação eleitoralmente promíscua.
E, assim como acontece com Arandir, ninguém, absolutamente ninguém, acreditaria que um homem (ainda por cima bolsonarista!) fosse capaz de se compadecer do sofrimento de outro homem (ainda por cima petista!) que lhe pediu um derradeiro beijo antes de embarcar na nau de Caronte. Ou será que era só uma jangadinha?
Ah, e antes que você me pergunte por que não propus a imagem de um petista linha-dura beijando um bolsonarista idem, explico que o beijo de “O Beijo no Asfalto” é um beijo profundamente (nível Fossa das Marianas) cristão. Como comunista é, em essência, um ateu que acredita na capacidade do homem de substituir Deus, a imagem não faria nenhum sentido.
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