Não sou dado a bloqueios criativos. Pelo contrário. Em geral, se tenho dúvidas quanto ao que escrever num dia é só porque há assuntos demais e tempo de menos. Uma vez escolhido o assunto, porém, me sento diante do computador e entro numa espécie de transe até a frase final. Ao longo do processo, dou algumas risadas, faço umas firulas, solto uns fogos de artifício. E submeto o texto ao editor severo e impiedoso, esperando pelo veredito quase sempre lacônico: “lido”.
Mas confesso que a fala recente do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Editorial Federal, me deixou a manhã toda mergulhado num silêncio estéril. E, de acordo com a minha mulher, com uma carranca de meter medo. Depois de fazer uma comparação completamente descabida entre as atividades do Judiciário e da imprensa, Toffoli concluiu que “nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”.
É uma confissão de autoritarismo explícita. Praticamente um AI-5 informal. Em qualquer outro momento da nossa história recente, uma declaração como essa seria motivo para o maior auê (não confundir com anauê) do povo que se diz antifascista. Afinal de contas, temos um ministro da Suprema Corte, que até ontem mesmo ocupava a presidência do Poder Judiciário, dizendo que a função da instituição que ele representa é mesmo a de censurar previamente os súditos, digo, cidadãos.
Mas qual a reação dessas pessoas que consideram um absurdo digno de escárnio e impeachment, quando não de internação, a imagem do presidente Jair Bolsonaro brincando com a ema? Qual a reação deste mesmo presidente ou dos grandes democratas Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre? Qual a reação do garantista Gilmar Mendes, do progressista Luís Roberto Barroso ou do excêntrico Marco Aurélio Mello? Excelentíssima ministra Cármen Lúcia, não foi a senhora que ganhou os holofotes há alguns anos ao proferir um voto contra a censura que culminava com a “sabedoria infantil” do “cala-boca já morreu”?
Eu até diria aqui que o silêncio dos grandes defensores da democracia é ensurdecedor. Mas meu editor jamais permitiria um lugar-comum desses. O que não configura nenhuma censura, ao contrário do que pensa (não, pensar é uma palavra muito forte), do que imagina, do que delira um juiz aspirante a ditador. Porque na imprensa (e nunca no Judiciário), um dos papéis do editor é justamente o de primar pela liberdade de expressão, impedindo que ela caia na armadilha ou do mau português ou do arroubo calunioso, difamatório ou injurioso de quem escreveu e pode muito bem ter acordado do lado esquerdo (!) da cama.
Como as democracias morrem
Há alguns meses, antes de o coronavírus dominar o noticiário, a moda era falar de um livreco intitulado “Como as democracias morrem”. A ideia em torno do livro é a de que a democracia corre perigo com a eleição de líderes populistas, a ascensão da extrema-direita, essa balela toda feita para agradar aqueles que, como Dias Toffoli, têm uma versão muito específica da democracia.
Pois você não precisa fazer o esforço de passar pela soturna capa enlutada nem pelas 272 páginas de lenga-lenga acadêmico para entender como as democracias morrem. Para tanto, basta ler a declaração de Dias Toffoli sobre o Judiciário ser o editor/censor legítimo de todo o país e logo em seguida consultar a biografia do ministro na Wikipedia.
As democracias morrem quando um líder despreparado e mal-intencionado é, por circunstâncias diversas, eleito presidente da República. As democracias morrem quando este mesmo líder, sem se importar e sem entender o valor das instituições (algo que ele considera um valor abjetamente conservador), nomeia para a Suprema Corte do país um ex-advogado de seu partido. As democracias morrem quando este mesmo líder tenta comprar o Poder Legislativo e o caso vira uma ação a ser analisada pela Suprema Corte da qual o ex-advogado, tornado ministro, faz parte. As democracias morrem quando o líder cai em desgraça, mas o ex-advogado continua lá, ministro até os 75 anos.
As democracias morrem quando o ex-advogado, aproveitando-se da sua condição de ministro e completamente embriagado de poder, diz, ignorando os valores mais básicos da convivência harmoniosa de ideias divergentes e sem que haja consequência alguma, que cabe a ele decidir o que eu ou você ou o Oswaldo Eustáquio ou a Patrícia Campos Mello podemos ou não escrever.
[Se você gostou deste texto, mas gostou muito mesmo, considere divulgá-lo em suas redes sociais. Agora, se você não gostou, se odiou com toda a força do seu ser, considere também. Obrigado.]
Impasse sobre apoio a Lula provoca racha na bancada evangélica
Símbolo da autonomia do BC, Campos Neto se despede com expectativa de aceleração nos juros
Eleição de novo líder divide a bancada evangélica; ouça o podcast
Eleição para juízes na Bolívia deve manter Justiça nas mãos da esquerda, avalia especialista
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS