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Caro leitor,
Sei lá por que gostamos de eleições. Só sei que gostamos e a maior prova disso é que, nas últimas semanas, o assunto predominante nas rodas de conversa foi um só: as eleições municipais de 2024. Cansei de ouvir argumentos apaixonados em favor deste ou daquele candidato, bem como palestrinhas sobre a importância do voto consciente. Numa dessas ocasiões, dei a entender que nem sairia de casa para votar e... ouvi um sermão daqueles de ficar com a orelha quente.
Agora eu lhe pergunto: é normal gostar de eleições? Tenho a impressão de que em alguns países as pessoas não estão nem aí para isso. Como se participar da tal da Festa da Democracia fosse sinal de vulgaridade. Coisa de pobre e de louco. Mas não aqui, você sabe. Até porque aqui o voto é obrigatório. Além disso, no Brasil contemporâneo a identificação político-partidária, e a consequente participação apaixonada nas eleições, se tornou quase uma questão de sobrevivência.
Oxigênio cívico
Isso acontece, em parte, porque vivemos tempos conflagrados. Mas também porque, da minha geração para frente, fomos ensinados a valorizar as eleições como se elas fossem o oxigênio cívico sem a qual a democracia não sobrevive. Antes de entrar na Ladeira da Memória, porém, sobre isso me permita dizer que hoje sabemos que, a depender de como as eleições são conduzidas, elas podem representar o monóxido de carbono que asfixia lentamente a Dona Democracia.
Mas eu dizia que desceria pela Ladeira da Memória e aqui estou eu na janela do ônibus escolar. Tenho não mais de dez anos. E estou me divertindo fazendo aviõezinhos com os panfletos do vereador Jair Cézar – eterno representante do Bairro Alto. Claro que não estava nem aí para a política, mas isso não impediu a temida diretora Irmã Clementina de, no dia seguinte, me chamar em sua salinha para me perguntar onde eu tinha conseguido os santinhos e qual era a minha ligação ou a ligação dos meus pais com o candidato.
Me julguem!
Na mesma época, me lembro de acompanhar as cenas da apuração pela TV. Era o tempo das cédulas de papel e eu via aqueles homens cercados por montanhas de papel e os invejava em silêncio – primeiro porque para mim eles estavam envolvidos na missão importantíssima e dificílima de contar votos. E também porque eu fui uma criança muito esquisita, do tipo que adorava papel. Qualquer tipo de papel. Papel, papel, papel. Aliás, ainda adoro. Esquisito, né?
Muito tempo depois disso, votei pela primeira vez. Não me lembro se no Jaime Lerner ou no Fernando Henrique. (Me julguem!) Só me lembro de ficar na porta da seção eleitoral observando com cuidado o rito, a fim de não passar vergonha. Porque naquela época eu tinha uma vasta cabeleira – e era extremamente tímido. Sem maiores atribulações, pelo que me lembre, votei. Mais do que estar cumprindo um dever cívico, lembro da sensação de estar contribuindo para mudar o mundo para melhor. Ah, a juventude...!
Coxinhas & mortadelas
E minhas boas lembranças das eleições terminam por aí. Em meio a muitas idas e vindas, mudanças e mais mudanças, perdi várias eleições, a ponto de ficar totalmente alheio ao processo eleitoral. Só em 2014 é que voltei a sentir o gostinho das eleições, mas foi um gosto amargo, por causa da vitória da Dilma, sim, mas também por causa da humilhação que eu, aecista convicto (até parece!) na época, sofri naquela apuração. Eu era um estranho “coxinha” em meio à maioria de jornalistas “mortadelas”.
Mas quero voltar à questão inicial porque a incoerência humana me fascina: por que gostamos (tanto) de eleições se não confiamos nas pesquisas, nas urnas eletrônicas e muito menos nos candidatos? Por que nos damos ao trabalho de vestir nossa roupa-de-domingo para depositar nossas esperanças (ou seriam desejos mesquinhos disfarçados de esperança?) em Fulano ou Beltrano? Ou ainda no Sicrano que se diz antissistema, mas concorre a um cargo eletivo justamente para fazer parte do sistema?
Mais porquês
Calma que não acabou. De onde saíram esses tem mais porquês. Por que enfrentamos até filas se desconfiamos da lisura do processo? Por que acompanhamos a apuração como se fosse uma disputa de pênaltis, e comemoramos ou choramos se nosso candidato vence ou perde, respectivamente e nunca vice-versa, a não ser que você seja maluco? E, finalmente, por que insistimos em nos convencer de que vivemos numa democracia, isso depois de testemunharmos, nos últimos dois anos, provas e mais provas de que o sistema (olha ele aí de novo!) privilegia um dos lados da contenda?
Com essa saraivada de porquês sem resposta me despeço, desejando a você um bom voto, seja lá o que isso signifique. E, ah!, minha mulher aqui ao lado está dizendo para você se comportar, não fazer besteira em frente à urna e tomar cuidado com a ressaca da Festa da Democracia, hein!
Um abraço do
Paulo
Post scripta
P.S.: Não sei onde consegui os santinhos que jogava pela janela do ônibus escolar. Mas sei que o envolvimento dos meus pais com o vereador ou com a política foi o mesmo de sempre: nenhum.
P.P.S.: Não tenho respostas para os muitos porquês deste texto, mas tenho hipóteses. Duas, na verdade. Uma boa e uma ruim. A boa: gostamos de eleições porque ainda temos esperança de que nossos semelhantes – até mesmo o Tonhão do Posto ou o Seu Zé da Farmácia – ajam movidos pelas virtudes, e não por seus interesses mesquinhos. A ruim: gostamos de eleições porque elas nos dão a agradável sensação de, por meio da vitória do nosso candidato, podermos ter algum tipo de controle sobre a sociedade que nos cerca.
[Esta coluna é uma reprodução da carta que chega à caixa postal dos assinantes toda sexta-feira. Se você ainda não se inscreveu, lá em cima, logo depois do primeiro parágrafo, tem um campo para isso].