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Quando começa esse papo de fraude eleitoral, já fico (ficamos?) todo desconfiado. Fraude eleitoral é, quase que por definição, coisa de maluco. De paranoico. De gente que usa chapéu feito com folha de papel alumínio. Quando não do tiozinho saudoso do voto tangível, aquele em papel que ele vê cair na urna, e não “desaparecer” no universo de bytes e rams que ele não compreende. Afinal, como alguém ousa questionar a engenharia perfeita da democracia?
Mas esse preconceito em relação àqueles que têm um pé atrás com o processo eleitoral é fruto de algo bem mais profundo do que a rejeição ao espírito ludita que assombra as urnas eletrônicas brasileiras. Ou de uma nostalgia inexplicável por uma democracia que não vivemos nem jamais viveremos. O preconceito é fruto mais de um instinto de autoproteção.
A possibilidade de uma eleição fraudada mexe com a sensação de que, se temos controle sobre o Leviatã, esse controle só pode ser exercido por meio das eleições democráticas. Sem essa sensação, nos sentimos impotentes e escravizados. É como se o Estado ou “sistema” passasse a se autogerenciar, criando toda uma classe de pessoas à margem das decisões coletivas. Inadmissível, não?
Daí porque as pessoas que se levantam contra o sistema eleitoral, acusando-o de manipulação ou fraude, nos causam alguma repugnância. Como assim eles podem questionar a lisura de um processo que está na essência da democracia? Que heresia! Nessas horas, sempre aparece alguém, em geral um analista político, para apostar todas as fichas na perfeição técnica e científica das eleições. Coisa que não farei aqui. Tenho algum juízo.
Cartas marcadas
E assim tem início a velha discussão sobre a corruptibilidade de um sistema que é e não é virtual, já que as urnas eletrônicas não são conectadas à Internet – como não se cansa de esclarecer um sempre cansado funcionário da Justiça Eleitoral. Serial igual se o voto fosse em papel e, portanto, passível de recontagem. Porque os questionamentos quanto à legitimidade ou não das eleições, tanto aqui no Brasil quanto nos Estados Unidos, pouco têm a ver com a parte técnica do processo – por mais esfarrapada que tenha soado aquela desculpa do defeito no núcleo do supercomputador do TSE.
Legitimidade, veja bem, é diferente de legalidade. Uma eleição pode ser realizada totalmente de acordo com as regras – e ainda assim ser considerada ilegítima por aqueles que não concordam com essas regras ou que consideram ilegítimos os representantes que elaboraram as regras. Uma eleição, portanto, só tem legitimidade se o eleitor a considerar legítima. Se ele sentir que o candidato escolhido, independentemente de ter ou não ideias coincidentes com as suas, representa de fato uma maioria (absoluta ou relativa).
E é aí que a porca proverbialmente torce o rabo. Porque a legitimidade de uma eleição ou decreto municipal ou decisão judicial é necessariamente subjetiva e passa pela sensação de que preceitos éticos – da elaboração das leis eleitorais à apuração – estão sendo respeitados. De onde surge, portanto, a desconfiança de que tudo não passa de um jogo de cartas marcadas?
Legitimidade não é algo fácil de ser contestada – nem provada. A pessoa que, entre seu círculo de amigos e conhecidos, não conhece ninguém que votou no candidato vencedor tem mais chance de questionar a legitimidade do pleito inteiro. Serve para a eleição do síndico e de presidente da República. Já alguém que, em teoria, transita por universos plurais tende a legitimar qualquer resultado, porque em teoria (em teoria!) reconhece a incomensurável diversidade do debate público.
Burocratas do intelecto
Já entendeu aonde quero chegar, né? Pois é. A dependência das redes sociais como fonte de informação e convívio, bem como o isolamento forçado ou não da pandemia, reduzem nossa percepção de mundo. Dessa perspectiva reduzida é que nascem argumentos como “na minha rua (ou empresa ou clube ou timeline) ninguém votou em Fulano! Ninguém gosta de Fulano! Então como é que o Fulano pode ter ganhado a eleição?”.
No Brasil, ainda mais com a proposta do ministro Luís Roberto Barroso de implantar o voto pelo celular, a tendência é que as eleições sejam cada vez mais contestadas, independentemente dos candidatos nelas envolvidos ou de supostos sinais de fraude como o misterioso apagão no sistema do TSE. Cada vez mais, aceitar a existência de uma realidade que não a nossa, sem apelar para explicações-estapafúrdias-que-fazem-um-sentido-danado é um desafio mental e emocional.
A consequência disso é uma democracia verdadeiramente frágil, com representantes agindo sempre com a espada de Dâmocles sobre a cabeça. Uma democracia que, aos poucos, vai se revelando uma questão de fé na capacidade humana de engendrar sistemas justos de decisão coletiva. Ou você acredita no sistema, que alguns também chamam de mecanismo, ou não acredita – e, mesmo não sendo, corre o risco de ser chamado de louco por algum burocrata do intelecto.
A solução? Em termos institucionais e técnicos, não faço a menor ideia. Em termos individuais, contudo, talvez uma saída seja perceber que o mundo é bem maior do que as redes sociais e até a televisão fazem crer. Que o mundo é maior do que supomos e é misterioso. E que as pessoas são regidas pelo irracional, ainda que digam o contrário – daí resultados eleitorais que muitas vezes parecem fugir à lógica.
Ou talvez a saída seja mesmo se indignar com os que atestam a infalibilidade das eleições, assumir o chapéu de papel alumínio, desligar o 5G, jogar o forno de micro-ondas no lixo. E tentar ser feliz.