Minha mulher aqui ao lado me aconselha a não questionar a mais recente estatística a dizer que 33 milhões de brasileiros passam fome. Ela tem razão. Está coberta de razão. Aliás, ela tinha razão antes mesmo de abrir a boca para me dizer enfaticamente que fome não se questiona. E nem pense em fazer piada sobre a fome, hein?! Mas sou teimoso e pergunto por que tenho que engolir esse número. Logo eu, que não engoli os milhões de cadáveres previstos por Atila Iamarino ou as milhares de vidas salvas pelos lockdowns.
Me explica ela (mais uma vez, coberta de razão) que fome é um assunto delicadíssimo, porque mexe com dois temores primitivos. Primeiro, o onipresente temor de... passar fome. Por mais que a despensa esteja cheia e que os campos registrem recordes de produção, a fome é um espírito que acompanhou o homem ao longo da história. Ele habita todos os lares do mundo. E não há nenhum sinal de que essa assombração planeje ir embora.
O outro temor é mais civilizado, por assim dizer. É o medo do fracasso enquanto grupo. Somos uma civilização ultracomplexa, etcétera e tal, mas no fundo enxergamos o mundo como uma aldeia. E a simples possibilidade de alguém na aldeia estar passando fome é algo que mexe com nossos brios. Uma única pessoa passando fome é sinal de que fracassamos.
Daí a importância de ver esses números com alguma reserva, tento argumentar com uma voz tímida e quase tão fina e esganiçada quanto a de Pabblo Vittar. Afinal, tudo o que (faço aspas no ar) a narrativa hegemônica da esquerda quer é que reconheçamos o fracasso do capitalismo e a maldade intrínseca dos homens. O quê?!, pergunta ela, e os pontos de interrogação e exclamação juntos são um claro sinal de perigo. Por via das dúvidas, apago o “hegemônica” e “intrínseco” e repito pausadamente, arriscando-me a um ataque de fúria.
Que, estranhamente, não acontece. É uma cilada, Bino!, grita o grilo da minha consciência. Mas eu o ignoro e sigo dizendo que, para começo de conversa, não conheço a definição técnica de fome. Alguém aí conhece? Minha mulher me olha com uma cara de desconfiança se fechando no casulo para dele eclodir como raiva. Entendo o recado e aproveito para fazer uma pesquisa rápida. E retomo: de acordo com algum burocrata do IBGE, fome é quando há insegurança alimentar grave. Definição ampla, sujeita a múltiplas interpretações, ao gosto do freguês, não?
Sim, concorda ela de má vontade, me perguntando o que seria essa tal de insegurança alimentar. Encontro outra definição que só posso chamar de esdrúxula: insegurança alimentar é quando o domicílio não tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente, sem comprometer as outras necessidades essenciais. Não fui adiante, mas tenho certeza de que, se pesquisasse a definição desse “necessidades essenciais” aí, entraria num buraco negro de definições cuidadosamente elaboradas para significar nada e qualquer coisa.
E, no entanto, a notícia de que 33 milhões de brasileiros passam fome é reproduzida sem qualquer contestação. Uma notícia que traz à mente imagens de etíopes famélicos na década de 1980. Ou de homens cadavéricos quando da libertação de Auschwitz. Para os que conhecem um pouco mais de história, a notícia evoca ainda os horrores do Holodomor ou do Grande Salto Para Frente, quando pessoas se alimentavam de cascas de árvores ou apelavam ao canibalismo para sobreviverem. Trazendo a fome para o território nacional, ela sugere quadros de Portinari e livros de Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos.
Além disso, continuo, esse tipo de estatística de números incompreensivelmente estratosféricos ignora circunstâncias muito particulares que levam as pessoas a passarem fome. Nessa hora, passa na rua um mendigo. Cantando como se não houvesse amanhã. Ele provavelmente vai receber um prato de comida do convento aqui perto. Minha mulher, que vai chegando cansada ao final da crônica (e com toda a razão; sempre), não me pede para explicar quais seriam essas circunstâncias, mas explico mesmo assim: envolvimento com drogas, dependência de álcool, transtornos psiquiátricos e alienação familiar.
A conversa termina por aí. Minha mulher vai pegar alguma coisa na cozinha. Mas continuo pensando e escrevendo mentalmente esta coluna. Além do mais, digo para mim mesmo e, agora, para os leitores, o número alardeado ignora toda a rede de assistência criada nos últimos cem anos, bem como as melhorias na rede de distribuição de alimentos e o consequente barateamento de itens básicos, como o pão nosso de cada dia. E, malandramente, ignora que a suposta existência de 33 milhões de brasileiros vivendo como etíopes da década de 1980 ou ucranianos da década de 1930 significa que toda a imensa e custosa máquina assistencialista do governo é um engodo. Nada menos do que um engodo.
Ela volta da cozinha e percebe que ainda estou pensando no assunto. Sorrio como se estivesse fazendo bagunça. Não consigo evitar, respondo. Ela me pergunta se já terminei e respondo que sim. Minha mulher abre a boca para dizer alguma coisa, mas me antecipo. Calma. É que faltou dizer que essa estatística não aponta nenhuma solução. Não é o papel dela, eu sei. O papel da estatística é criar um cenário de pesadelo. Mas imaginemos que o papel da estatística fosse apontar caminhos. O que mais pode ser feito além da produção de alimentos em larga escala e dos programas governamentais de assistência, sem falar nas milhares de instituições, religiosas ou não, que oferecem um prato de comida para os mais necessitados?
Agora terminei mesmo, informo. Minha mulher, vencida pelo cansaço e por minha chatice, me dá permissão para escrever sobre a fome. Com uma condição. Ela pede encarecidamente que eu não faça piada com um assunto tão delicado. A ideia passou pela minha cabeça, não nego. Mas obedeço.
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