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O jornalista Hélio Schwartsman escreveu, no jornal Folha de São Paulo, uma coluna intitulada “Por que torço para que Bolsonaro morra”. Sobre o conteúdo, cuja argumentação pressupõe um bem maior decorrente da morte do presidente por Covid-19, já escrevi bastante. E acredito que consegui demonstrar a imoralidade do desejo publicamente exposto. Logo que o texto dele começou a circular, porém, houve quem pedisse cadeia ao jornalista. Ao ponto de o ministro da Justiça, André Mendonça, usar a Lei de Segurança Nacional para pedir que a PF investigue o artigo.
Imaginar como a PF investigará o artigo é algo que me fascina. Fecho os olhos e vejo derrubando a porta do texto dois ou três Pasquales brutamontes, munidos de Cegallas e Becharas e vestindo coletes à prova de vírgula separando sujeito de predicado. Aí começa a investigação. Será que farão análise sintática de todas as frases? Avaliarão as figuras de linguagem? O uso de lugar-comum é considerado agravante? E aquele “advier” estranho e cheios de arestas no meio da frase? A Constituição permite uma coisa dessas?!
A reação do ministro, bem como de alguns leitores mais exaltados, revela um engano muito comum em torno do conceito de liberdade de expressão. No Brasil, a liberdade de expressão não é irrestrita e tem três freios (com o perdão pelo trava-língua): calúnia, injúria e difamação. Entre os muitos crimes confusos e abertos a interpretações que existem por aí, esses me parecem exceção. São crimes bastante delimitados e de fácil entendimento. Até um idiota sabe – eu diria, mas aí poderia estar cometendo crime de injúria.
A confusão está nos não-crimes da liberdade de expressão. Que são vários. A zombaria, a ridicularização e o deboche, por exemplo, incomodam e até ofendem, mas não são crimes. O mesmo serve para o mau-caratismo, a calhordice, a cafajestagem, a patifaria – e um sem-número de falhas de caráter inerentes ao ser humano e que, sinceramente, fazem mais mal a eles mesmos do que aos demais.
Para o mau-caráter, os castigos naturais da convivência social, por assim dizer, são muitos e bem mais severos do que uma noite dormindo de conchinha com um assassino confesso qualquer. Imagine alguém, por exemplo, que numa entrevista, depois de uns chopes a mais, deixe aflorar seu lado menos nobre e diga que se considera melhor do que outro porque é engenheiro. Não há nada de criminoso nessa fala. E, no entanto, uma pessoa que dissesse isso em rede nacional seria condenada ao ostracismo e, se calhar, até à demissão.
Mais do que aos olhares de repulsa, ao fim do contracheque ou até a uma bronca dos pais, o mau-caráter está condenado a conviver consigo mesmo e com todas as consequências subjetivas de sua calhordice – até o fim de seus dias. É prisão perpétua. Uma prisão espiritual que talvez não sacie o nosso desejo secular (com um quê de primitivo) de ver o ofensor sofrendo castigos físicos e privação de liberdade. Mas ainda assim.
Tampouco é crime, ao menos por enquanto, expressar algum desejo perverso, como fez Schwartsman recentemente. E, por mais contraditório que isso possa parecer a nós que nos sentimos enojados diante de algumas ideias flagrantemente imorais e que mexem com um senso de justiça inato, a não-criminalização das intenções, por mais nefastas que elas sejam, é um dos pilares da Civilização.
Respeitando as fronteiras já bem delimitadas pela calúnia, injúria e difamação, o mau-caráter deve ser livre para expressar quaisquer desejos maléficos que possa nutrir por qualquer assunto ou pessoa. Assim, nós o reconheceremos no tal “seio da sociedade” e, a partir daí, poderemos decidir livremente como agir: deixando de lê-lo, demitindo-o, não retornando as ligações.
E eventualmente até perdoando.
Daí porque o pedido do ministro da Justiça para investigar o texto escabroso de Hélio Schwartsman e as sugestões de que o autor deveria ser preso são equivocados. Nessas horas, é preciso ser consequencialista (?!) e se antecipar ao mal maior provocado por uma persecução criminal do tipo. Me refiro aqui aos gritos de “censura! fascismo! obscurantismo!”, ao vitimismo e à criação em potencial de mais um “paladino da liberdade mal-compreendido pela sociedade ultraconservadora de extrema-direita e seu regime bolsolavofascista, blá, blá, blá”.
Logo, torço para que o ministro Mendonça bote a mão na consciência (sem tirar a máscara e passando álcool em gel antes, como convém em tempos de pandemia) e desista de processar Schwartsman, condenando-o, assim, à pior e mais cruel das penas: ser o consequencialista que é.
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