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A votação do Senado que derrubou o veto presidencial e permitiu o reajuste nos salários dos funcionários públicos é um daqueles casos que deixa o cronista alvoroçado na manhã fria e chuvosa. Tanta coisa a comentar! Dava para falar, por exemplo, sobre a falta de perspectiva histórica dos senadores – mas sobre isso o ministro Paulo Guedes já se expressou com precisão. Dava para falar ainda da ideia falsíssima de onipotência que atribuímos ao Presidente e que leva muitos a depositarem todas as esperanças em determinado indivíduo.
Mas prefiro pensar nele, no Servidor Público, que nos últimos anos se tornou uma abstração que adoramos atacar por causa dos privilégios e regalias, quando não por causa da corrupção. Ao ler as notícias sobre a derrubada do veto, eu mesmo me peguei dando um soco na parede, revoltado com a irresponsabilidade e o poder imoral das tais corporações. Com os nós dos dedos sangrando, me lembrei da minha última visita ao Detran. E, por uns segundos, virei assim um Hulk todo indignado.
Aí peguei o telefone e resolvi conversar com um Servidor Público. Um ex-colega de faculdade que, em busca de estabilidade, prestou concurso público e agora pertence à Fraternidade do Holerite Estatal. Queria entender como ele, que é uma pessoa esclarecida, leitor de Mises e até de Rothbard, se sente diante da possibilidade de receber aumento de salário em meio a uma crise sem precedentes causada pelo maldito coronavírus.
Depois de rirmos muito da nossa ingenuidade e das traquinagens estudantis de que éramos protagonistas, ele fica sério e diz, sem muitos rodeios, que se sente envergonhado. “Eu e meus colegas temos um bom salário e estabilidade hoje, e terei uma aposentadoria bastante confortável amanhã. Não vejo nenhum sentido em provocar a opinião pública, a grande massa pagadora de impostos, com um pedido de aumento desses”, afirma o Servidor Público.
Mas ele sabe que sua postura é exceção da exceção da exceção. Da exceção. “Ontem tive uma reunião virtual com meus colegas e todos estavam (a) revoltados com o afrouxamento do isolamento social, (b) vestindo a camiseta amarela “pela democracia”, (c) com o broche do PT na lapela e (d) fazendo planos para comprar uma adega nova, com capacidade para mais garrafas”, contou.
A conversa, então, assume contornos mais filosóficos. Falamos do princípio básico da escassez e de como a distorção disso afeta as escolhas morais dos funcionários públicos. “Veja meu caso. O salário cai na conta todos os meses e sempre sobra. E eu sei que será assim até eu morrer. Então, se eu não tomar cuidado, acabo me transformando numa pessoa que está sempre tentando preencher a vida com coisas supérfluas. Pior! Se eu não tomar cuidado, posso acabar acreditando que todos esses privilégios são uma espécie de direito divino. Acontece muito, infelizmente”.
O Servidor Público conta a história de uma colega possuída por essa sensação de que a sociedade lhe deve salário alto, aposentadoria generosa, auxílio-isso, auxílio-aquilo, carro oficial e 60 dias de férias por ano. “Ela viaja o mundo e passa o dia exaltando o sucesso social de países onde funcionário público nem sonha com essas regalias. Ela simplesmente não percebe a relação direta entre os problemas econômicos e sociais do país e seus privilégios. E isso, infelizmente, é muito comum”, diz ele.
Paira sobre nossa conversa uma sensação de derrota. Não a derrota política imposta pelo Senado, que deveria ser a casa dos senhores sábios a mediar as decisões da Câmara. É uma derrota maior. Uma derrota moral. “O Senado me constrange. Os sindicatos me constrangem. Meus colegas me constrangem”, diz ele. “Sinceramente, eu mesmo, me olhando no espelho agora e sabendo que sou parte minúscula, mas ainda assim parte, dessa festa parasitária, fico constrangido comigo mesmo”.
Antes que o Servidor Público comece a chorar, digo para ele mandar um beijo para a mulher e a filha. E o convido para um café quando ele estiver por perto e a pandemia passar. “Café nada! Vamos jantar no melhor restaurante, beber os melhores vinhos, rir até o dia raiar. Tudo por conta do meu cartão corporativo, claro”.
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