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Num dia insuportavelmente quente de 2005, peguei um táxi e me despenquei até o apartamento de Ferreira Gullar em Copacabana. A entrevista foi encomendada por uma extinta revista literária chamada “Ideias” – mesmo nome da editoria que ocupo hoje na Gazeta do Povo. Aos 27 anos, eu mal tinha saído dos cueiros e achava que era capaz de convencer o autor do “Poema Sujo” de que a literatura tinha acabado e que o futuro nos reservava a comunicação por grunhidos. Quanta pretensão, a minha.
Gullar recebeu a mim e à fotógrafa (na verdade uma amiga sem qualquer experiência em fotojornalismo, mas com uma câmera digital boa) com uma sisudez inesperada. Ele fez com que nos sentássemos numa mesa que ocupava quase toda a salinha cercada por obras de arte e se pôs a falar, falar, falar. E (disso lembro muito bem!) nem nos ofereceu um copo d’água.
Aqueles eram outros tempos. Tempos mais tranquilos, em que era possível conversar com um poeta, poeta mesmo, sem falar de política. Digo, aqueles eram tempos tão estranhos que eu mesmo, a certa altura, reclamo – veja só! – do fato de os poetas da minha geração não terem voz política. Ah, se eu soubesse o que o futuro nos reservava...
Pouco tempo depois de realizada a entrevista, a podridão do governo Lula começou a vir à tona. Gullar se posicionou como um antipetista, o que lhe rendeu o desprezo de companheiros de letras e leitores que reclamavam de uma suposta incoerência ideológica.
Na entrevista a seguir, Gullar falou do momento em que se descobriu poeta e ainda se revelou consciente de sua grandeza na cena literária daquela época. Ele fez críticas ao hermetismo da poesia contemporânea e não citou nomes para elogiar o que achava bom. Sobre a Academia Brasileira de Letras, foi político. Negou qualquer intenção de entrar para a ABL, mas nove anos mais tarde acabou eleito para a cadeira 37.
De acordo com o que deixou registrado o entrevistador de apenas 27 anos, “descendo por aquele elevador antigo, num prédio de pé-direito altíssimo numa rua modesta de Copacabana, envelheci uns bons anos. Caí na rua com rugas fundas no rosto cansado. Compreendi, pelas palavras do poeta, que, ao inventar a mim mesmo, pelo exercício cotidiano do espanto, acabo por fazer surgir de tal alquimia a Beleza. Ainda que eu insista em ver algum defeito no último decassílabo”. Exagerado, dramático, teatral? Imagina!
Ferreira Gullar faleceu em dezembro de 2016.
Ando pensando muito sobre o que leva uma pessoa a ser poeta. Por isso, gostaria de começar a entrevista com a sua história. O senhor se lembra do momento em que a poesia surgiu na sua vida?
Lembro. Há dois momentos. O primeiro foi meu interesse inocente por poesia e, em seguida, por escrever poesia. Foi no colégio onde eu estudava, no jornalzinho do colégio. Li um poema que hoje vejo que era muito ruim, mas este poema ruim me motivou a fazer poesia. Tanto que, no meu último livro, tem um momento em que falo do mau poema que também tem sua razão de ser. Depois fiz poemas para a namorada...
Uma motivação universal...
É universal. Essa foi a primeira etapa. Em seguida, já pretendi fazer poesia com métricas e sonetos – que era o que estava em vigor no Maranhão naquela época. Costumo dizer que nasci em Macondo, porque isso tudo se passa por volta de 1945 ou 1946 e o modernismo ainda não havia chegado lá.
O senhor seguiu um caminho tradicional, fazendo métrica para depois quebrar estas regras...
Mas para mim, na época, a poesia que existia era aquela. Não conhecia poesia moderna. Continuando, essa etapa inicial vai até o momento em que tomei consciência do que era a poesia. Foi num sebo em São Luis. Comprei um livro, acho que sobre princípios de filosofia, e um de contos do Hoffman. Quando peguei aqueles livros todos encardidos, cheirando a mofo, aquilo me pareceu uma coisa morta. Participando mais da morte do que da vida. Na hora, achei que a literatura se confundia com aquelas páginas cheias de mofo e fungo. Então me perguntei qual o sentido de fazer literatura, se era para terminar num sebo, nas páginas de um livro cheio de fungo. E esta foi a pergunta fundamental.
Ao fazer essa pergunta, respondi a mim mesmo que só havia sentido escrever se a poesia mudasse a vida. E aí fui reler os versos que estavam na gaveta da minha escrivaninha e comecei a rasgá-los, porque aqueles poemas não mudavam nada. Até que parei em um. Não que ele mudasse algo, mas é que eu não queria ficar sem nada (risos). O que revela um pouco de mim, uma característica minha que é gostar de mim mesmo, ser complacente comigo em certos casos, não ter raiva de mim. Mas foi a partir dessa resposta que começou uma segunda etapa, de compromisso verdadeiro com a poesia.
Aquela pergunta juvenil ainda o norteia?
Respondi à pergunta e a resposta continua valendo.
O senhor nunca refez essa pergunta e se questionou sobre a validade da resposta?
Num momento ou outro a gente se pergunta. Principalmente nos momentos de dificuldade da vida, de coisas pesadas. Mas a resposta é essa porque não há outra resposta para mim. A outra resposta seria Deus, no qual eu não acredito.
Percebi que é quase uma obsessão de quem o entrevista perguntar sobre a sua religiosidade. Não fugindo a esta “tradição”, como anda a sua religiosidade agora?
Sou agnóstico. Acho que o mundo é uma coisa inexplicável. E Deus, a mais extraordinária invenção do ser humano, é a resposta para todas as perguntas sem respostas. Como não acredito em Deus, não tenho essas respostas. Tenho de lutar diariamente com este problema do grande mistério da vida. Minha reflexão atual sobre isso é que a vida realmente não tem sentido, mas cabe a nós atribuirmos sentido à vida. O homem, desde que ele existe, responde às perguntas sem resposta com Deus. Não é à toa que, depois de tantos anos de materialismo, a religião ainda continua poderosa. Além de dar respostas, a religião é algo muito importante.
É muito difícil ser agnóstico e ateu? Eu tentei e não consegui.
Eu me inventei assim. Até porque na minha família não havia questões religiosas. Minha mãe e meu pai se diziam católicos, mas não havia sequer santos na casa. Ninguém rezava, ninguém ia à Missa. Fui batizado, mas não fiz Primeira Comunhão nem nada. Essa ausência de religiosidade, de fé, também excluiu o conflito. Sou agnóstico, mas não tenho nenhum problema com a religião. Não tenho dificuldade de aceitar a importância da religião para o ser humano. Minha relação com a religião é muito objetiva. Sei que ela é importante e acho que eu escolhi o pior lado, que é aquele de achar que vou morrer e acabar para sempre. E não tenho nada em que me agarrar.
Qual a diferença sobre o que significa ser poeta na sua geração e hoje em dia? A sua geração tinha motivações políticas (alguns) e preocupações com a forma. Talvez houvesse motivações metafísicas. Hoje em dia...
Uma coisa que eu vejo na poesia jovem é um certo hermetismo que, evidentemente, não me agrada. Acho que a poesia não deve ser superficial, mas também não deve ser hermética. É claro que quem quiser pode fazer. Estou dando a minha opinião. Porque, a não ser que a pessoa tenha uma necessidade muito profunda de comunicar uma realidade indecifrável que ele não consiga expressar de outra maneira...
Mas normalmente acho que a função do poeta é ir ao mistério e trazê-lo à tona para as pessoas. Senão, que sentido tem? Se eu tenho a compreensão da complexidade e não transmito a complexidade, isso é inútil. Sou a favor da complexidade e não sou a favor da ideia de que você tenha de ser claro, mas se é para ser hermético, tem que ser como Mallarmé: ele era hermético, mas era profundo, denso. E tem que fazer um esforço para traduzir isso em palavras. Agora, o hermetismo como uma fórmula não pode.
Acho então que ando conversando e lendo os poetas errados. Porque o que vejo é justamente uma superficialidade gigantesca.
É superficial, mas é hermético. Nos poetas que leio o que vejo é que é superficial, mas difícil de ler.
O senhor acompanha a produção atual?
Na medida do possível. Leio os suplementos, revistas, livros que me mandam. Às vezes leio dois ou três poemas. Se não presta não vou ficar lendo.
E sua opinião sobre o que se produz hoje...
Costumo dizer que onde há poeta há poesia. Onde há pintor há pintura. Onde há compositor há música. Porque o que cria é a personalidade, não a coletividade. É evidente que toda personalidade está situada historicamente. Mas se não há a personalidade, não há a obra. Se não tem Oscar Niemeyer não tem a arquitetura de Oscar Niemeyer. Tem que ter ele, com as características dele. Porque as pessoas não são iguais. São iguais em direito, mas não em qualidades. Cada pessoa é uma pessoa “irrepetível”. O cara tem é que ser poeta.
Vejo que há bons poetas jovens. Não vou mencionar nomes aqui porque vou acabar omitindo alguns. Mas há vários que são bons poetas, na geração dos quarenta anos, que eu conheço mais. Além disso, não sou muito bom de julgar. É muito difícil. O único julgamento que faço é quando não comunica nada, porque, como poesia não cura dor de dente nem queda de cabelo nem diarréia, ela tem que ter alguma finalidade, que é comunicar, comover, causar um frisson no leitor. Se leio e não me provoca nada, para mim não tem sentido.
Uma ideia recorrente é de que o desregramento da poesia durante o século XX acabou por vulgarizá-la.
Não é verdade. O verso livre levou o poeta a buscar uma disciplina e uma exigência até maior do que as formas clássicas. Os grandes poetas do passado que escreviam em versos metrificados tinham exigências também; mas o fato de ser rimado e metrificado, por ser uma técnica de fácil aprendizado, muitas vezes virava um automatismo.
O senhor mesmo mencionou que falava em decassílabos.
(Risos). É. Quando eu era jovem, integrado naquele tipo de linguagem, às vezes eu falava em decassílabos. Sem querer. Quando dava por mim, saía um verso. Perfeito. Mas a verdade é que, com o verso livre, no meu caso - que rompi com uma tradição de poesia metrificada - me perguntei como transformar a linguagem que era mera prosa em poema. Foi um desafio para mim. Um desafio colocado para sempre. No meu caso, em vez de eu ter uma disciplina externa, a da métrica, tenho uma disciplina interior. O poeta do verso livre é como o Romário ou Zico: a bola vem e ele tem de estar preparado. É uma disciplina da mente e do corpo que está entranhada. E essa disciplina vai se exercer a todo momento, porque a forma do poema é imprevisível. Ou você cai numa liberalidade, que é esta a que você se referiu, ou você tem uma disciplina interna.
Hoje em dia muitos poetas estão voltando à métrica.
Normal. Na Geração de 45 houve um retorno ao soneto. Hoje acontece de muitos poetas – como aconteceu com Drummond, Vinícius e como acontece comigo – fazerem uma coisa e outra. Também faço. No último livro, há um poema que se chama Nova Concepção da Morte, que é um poema feito em dodecassílabos, um verso clássico, a forma mais parnasiana de todas. É claro que, a certa altura, esculhambo, tomo certas liberdades. Mas faço isso e não sei por quê.
O senhor acha que a falta de bandeiras para se levantar hoje em dia faz falta à poesia?
Quero deixar bem claro uma coisa: muita gente diz que eu sou um poeta político, mas eu não sou. Fiz poesia política, sim.
Concordo.
O que houve é que, durante um determinado período, em consequência da situação mundial e brasileira, me engajei na luta política e minha poesia refletiu esse engajamento. Mas acho que ninguém é obrigado a fazer poesia política, mas tampouco é proibido. Conheço poetas jovens que fazem uma poesia que tem a ver com a realidade social. E muitas vezes questões internacionais se refletem na poesia deles. Talvez não de forma tão óbvia, mas eles têm uma preocupação com questões ambientais, de desigualdade social. O que importa é que o poema seja bem feito, que seja poesia, que seja literatura no sentido mais alto.
Mas durante boa parte do século XX o poeta foi um ser político, teve voz política. Algo que hoje, entre os poetas da minha geração, não vejo.
Não estou fazendo poesia política. Mas estou sempre clamando contra a injustiça, o terrorismo, a violência. Creio que é mais eficaz. Dou entrevista a um jornal e digo as coisas com mais eficiência do que se fizesse um poema. A crônica que escrevo na Folha é mais eficiente. Agora, no meu poema eu vou falar sobre o que quero, que é uma coisa mais profunda e mais complexa, que não há como dizer com palavras no jornal. É uma coisa de outra natureza, uma invenção da minha vida e da vida dos outros. Me sinto à vontade de fazer essa poesia sem sentir remorso por ter parado de fazer poesia política.
E política literária?
Política literária considero uma afronta. Não participo disso. É, para mim, uma coisa pejorativa. Agora, relações de amizade com escritores, troca de impressões e opiniões, isso é outra coisa, isto é vida literária. O que entendo por política literária é o cara ficar fazendo jogo para tirar vantagens de amizades. Isso não é uma coisa boa, não.
O senhor é um defensor da individualidade na criação artística. Hoje em dia, no entanto, percebo que muitos escritores e poetas andam em bando, como escoteiros...
(Risos) Eu não acho mau. Vamos distinguir as coisas. O pintor Siron Franco, quando está no seu ateliê, faz o seu trabalho sozinho. Isso é arte individual. E existem artes que são coletivas como o cinema: um escreve o roteiro, outro dirige, há o intérprete, o montador. Mas existe um criador inicial, o cara que bolou o filme. Já a poesia, como a pintura, é extremamente individual. O que não significa que não seja social. Porque cada um de nós, na sua individualidade, é parte do momento histórico que está vivendo, da família, da comunidade, dos amigos. Esse indivíduo é coletivo.
Conversando com um poeta da sua geração, ele me chamou a atenção para uma espécie de papado que existe na poesia brasileira. É a tradição de passar o cetro. Manuel Bandeira passou para Drummond, que passou para João Cabral, que teria passado para o senhor.
Não diria que é papado, mas concordo que isso de se eleger um poeta como se fosse o único do país não está certo. Sem dúvida, Drummond, Bandeira e João Cabral são grandes poetas, mas havia outros, contemporâneos deles, que tinham grande qualidade e dos quais quase não se falava. O problema, no entanto, é que isso ocorre não se sabe como e à revelia dos eleitos, porque certamente não foram aqueles poetas que se arvoraram Papas.
Li uma entrevista na qual o senhor diz que só escreve quando tem algo a dizer. Queria que o senhor falasse um pouco da importância do tempo para o poeta. Vejo tanta gente escrevendo tanto, falando tanto...
Na poesia eu não posso fazer como numa crônica, que tenho data para entregar. Na poesia não decido quando. Porque o motor gerador da poesia está fora de mim, fora do meu controle. De repente a poesia vem. É uma coisa que Manuel Bandeira dizia: o poema escolhe o momento de nascer. É verdade, escolhe. Acho que fazer poesia é aprender a fazer poesia, permanentemente. E, quando você sabe demais, tem que desaprender. Porque a poesia é o erro e a superação do erro. Não se pode estar seguro. Atualmente escrevo com mais dificuldade do que escrevia antes. Por exemplo, escrevi um poema chamado Desordem. Depois fui reler este poema, na forma que parecia final. Quando o estava relendo, começaram a surgir na minha cabeça ideias que não estavam expressas nele, mas que diziam respeito a ele. Aí escrevi uma espécie de adendo ao poema. Isto nasceu de modo imprevisível, da leitura do próprio poema.
Certa noite, saía da casa da Claudia [Ahimsa, companheira do poeta]. E, quando atravessava o jardim, havia ali um jasmineiro lançando perfume no ar. Fiquei louco. Arranquei umas flores do jasmineiro e saí cheirando aquilo, aspirando aquilo que senti como um veneno. É que o cheiro do jasmim parece suave de longe. Quando você aspira, ele se torna selvagem. Aquilo me envenenou. Entrei no meu carro doidão porque havia tomado um porre de jasmim e vim embora para casa. Aí, quando cheguei em casa, dormi e no dia seguinte escrevi um poema sobre aquele barato. E aquele jasmineiro está lá há anos e nunca me provocara tal sensação e de repente naquela noite provocou.
Ou seja, é uma coisa que não tem controle. Jamais escreverei um poema pela simples ideia de que faz tempo que não escrevo um poema. E acho que ninguém escreve assim. Se escrever, não dá certo. Não estou falando de inspiração, mas é um acontecimento de caráter psicológico ou existencial que provoca um relâmpago, um curto-circuito. Na verdade, vou te dizer uma coisa: você não escreve a verdade do jasmim. Você inventa uma verdade para o jasmim. Porque a vida é uma invenção. O homem inventa a si mesmo permanentemente. E inventa a vida dele. Então o poema não é o registro da experiência do poeta. Não. A experiência da vida provoca uma invenção. E você cria um artefato que passa a ser a expressão verbal da experiência, mas que não é a experiência.
Como o senhor acaba de ganhar um prêmio da Academia Brasileira de Letras, sou obrigado a perguntar: e a Academia? O senhor tem vontade de vestir o fardão? Já houve convites?
Já fui convidado várias vezes. Uma vez uma pessoa chegou para mim e disse: “Um grupo de acadêmicos que constitui a maioria na Academia me autorizou a convidar você para se candidatar. Não haverá nem disputa”. Isso já aconteceu mais de uma vez. Mas eu te digo uma coisa: tenho muitos amigos na Academia e tenho respeito pela instituição. Mesmo porque ela foi criada por Machado de Assis, que é o grande escritor nacional. Mas eu não tenho vontade de entrar, porque não participo de comunidade, de instituição alguma. Gosto de conversar com meus amigos. E muitos dos meus melhores amigos são da Academia. Mas, pelo fato de eu não estar na instituição, a relação é de outra natureza. É a relação do amigo mesmo, do fraterno, nada institucional. E eu não me ajusto muito bem ao que é institucional. Até no Partido [Comunista. Gullar se filiou ao PCB no dia 1o. de abril de 1964, mas depois se afastou da esquerda e declarou o comunismo "um fracassado"] eu criei muita encrenca. Sou, como me apelidaram sarcástica e afetuosamente, um "profissional do pensamento”. E isso acaba virando um conflito.
O senhor já esteve cotado para o Nobel de Literatura. Como foi isso?
Pedi às pessoas que não me indicassem. Mas, depois que fiz 70 anos, um amigo disse que me indicaria. Eu disse: “Sai dessa!”. Daí deixei para lá, porque não estou aqui para trabalhar contra mim. Mas achei que tudo iria ficar só naquele papo. Quando percebi, já haviam contactado catedráticos de literatura de universidades no mundo inteiro. Eu disse: “Pare com isso, cara! Você não percebe que isso é um sonho vão?” No final, apresentaram a candidatura lá. Tudo isso foi feito à minha revelia. Mas se você me perguntar se eu gostei, não vou bancar aqui o hipócrita e dizer que não. Se isso acontecesse, seria importante para a literatura brasileira e para mim, naturalmente. E também seria perturbador, porque eu passaria a ser molestado internacionalmente. Minha vida se tornaria um inferno. Porque é uma coisa muito louca, uma coisa que não tem muito a ver com a natureza do escritor, que precisa ficar em paz para escrever. Sobretudo hoje, na sociedade midiática.
Falando sobre artes plásticas, gostaria que o senhor me contasse aquela história do extintor de incêndio, que virou um paradigma para os críticos da arte contemporânea.
Eu estava visitando um museu em Paris. Numa das salas, havia uma exposição de arte contemporânea, objetos, instalações, aquelas coisas. Em certo momento, uma senhora se defrontou com um extintor na parede e começou a discutir com o marido se era obra ou não. E eu próprio não sabia dizer. Foi isso que aconteceu.
De fato, sou bastante crítico a este tipo de arte. Não acho que seja uma embromação ou uma fraude, nada disso. Acho que se trata de um fenômeno decorrente de um processo histórico e cultural. É uma coisa bastante complexa. E que tem essencialmente a ver com a ruptura da linguagem artística e com uma mudança no mundo em relação à desvalorização da fantasia e do imaginário em função de uma arte pretensamente objetiva, como a de Mondrian ou Duchamp. Uma arte sem ilusão, sem fantasia. Mas eu sou a favor da fantasia...
Este processo conduziu à desintegração da linguagem. E era inevitável, porque se eu decidir usar a minha linguagem verbal para não dizer as coisas, e sim para brincar com as relações entre as palavras, vou desintegrar a linguagem no final. Vira o caos. E foi isso o que aconteceu com a arte dita contemporânea. Costumo brincar, de um modo sarcástico, que esta arte é a Caninha 51, porque como ela não tem linguagem, é só uma boa ideia.
Outro dia eu fui a uma loja especializada em cabides. Só tinha cabides. Daí eu pensei: “Vou fazer uma instalação com esses cabides". Imagine cinco mil cabides de formas e cores diferentes formando uma composição. É uma boa ideia. É muito diferente de como nasceu “Guernica” ou “As Meninas”, de Velázquez. O interessante é que é um desvio que só se perdurou nas artes plásticas. Nos outros campos da atividade artística, esta ruptura não sobreviveu. Na literatura, chegou até à loucura de “Finnegans Wake”. Mas você já imaginou se a literatura tivesse seguido o caminho de “Finnegans Wake”?
Acabava.
Sim. Você não teria Borges nem Faulkner nem Guimarães Rosa. nem Graciliano, García Márquez nem... toda a literatura moderna pós anos 1930. Aquilo foi uma experiência específica do Joyce, mas ele próprio disse que, depois do “Finnegans Wake” a próxima obra dele seria de uma claridade absoluta. É claro. Porque depois daquilo não havia nada. Era o fim do túnel. Só tinha rocha. Outro dia vi uma entrevista da Camille Paglia dizendo para os artistas de hoje que foram contemporâneos dela, iconoclastas e rebeldes na juventude: “Pessoal, nós estamos no ano 2001. Já faz quarenta anos dessa brincadeira. Chega. Vamos fazer obra para perdurar? Vamos buscar a beleza de novo? Vamos restituir a fantasia? A arte?”
Por fim, gostaria de saber como é ser uma celebridade literária no Brasil. Isso o incomoda?
Recebo muitos livros de autores novos e não tenho como ler. Eu entendo que as pessoas me mandem, só que não tenho tempo. Meu barato é trabalhar a minha literatura e ler os livros que quero ler. Sinto até certo remorso por não dar tanta atenção quanto deveria, mas não posso. Às vezes, quando me deparo com algo que tem qualidade, até escrevo para o poeta. Mas isso é raro. A maioria não é coisa legal. Agora, na rua, as pessoas me reconhecem pelo meu cabelo. Tanto que comecei a andar com um boné para ter sossego. Porque às vezes as pessoas abordam para falar uma banalidade, uma coisa à toa. É dispensável. Legal mesmo foi um bêbado aqui em Copacabana, que estava chutando uns carros, doidão. Eu saí para comprar um remédio e quando ele me viu, gritou: “Ferreira Gullar, famoso e eu não sei quem é!”.