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Toda vez que ouço notícias vindas daquele cantinho da Praça dos Três Poderes onde se reúnem os ministros da Corte Suprema do país me lembro do saudoso Chico Anísio e de uma de suas criações inesquecíveis: a Escolinha do Professor Raimundo. Comandada por um mestre que reclamava do salário, aceitava suborno e adorava ser adulado, aquela sala de aula era um resumo deste manicômio abençoado por Deus e bonito por natureza chamado Brasil.
E é assim, como se ouvisse um dos bordões daqueles personagens todos, que tento manter minha precária sanidade ao me deparar com as mais recentes estripulias de Edson Fachin, Celso de Mello, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes & Cia. – personagens dignos da voz de Dirceu Rabello anunciando “essa turma do barulho vai arranjar muita confusão e aprontar todas na próxima sessão plenária do STF”.
Imagino um Brasileiro Qualquer na figura do professor Raimundo. Aquela peruca grisalha. A voz rouca e cansada. O tom entre o autoritário e o carinhoso. De repente, ele chama um dos ministros. Doutor Edson Fachin, chama ele, errando o pronome de tratamento. O ministro se levanta como um aluno obediente e o professor solta a pergunta à queima-roupa: “Vossa excelência acha que o ex-presidente Lula deveria ter participado das eleições de 2018?”.
Fachin alisa o bigodinho de personagem rodrigueano, olha para a câmera e solta seu bordão sem graça, mas que por algum motivo caiu na boca do povão. “Com a devida vênia ao professor”, começa ele, e a turma toda cai na gargalhada antes mesmo da piada em si. E diz que sim, que Lula, condenado por corrupção, deveria ter participado das eleições. “Teria feito bem à democracia”, afirma, todo sério. Ao que o Brasileiro Qualquer, interpretando o severo Professor Raimundo, responde simplesmente “Nota zero pro senhor”.
“Vade mecum!”
“Seu Gilmar Mendes”, chama agora o mestre. Sem olhar para o professor, o ministro diz “presente” e faz um gesto com a mão. Ele fala ao celular. Brasileiro Qualquer/Raimundo, então, faz troça da displicência do ministro. “Tô vendo que o senhor tá ocupado aí”, diz, fazendo seu melhor e mais generoso papel de escada nessa comédia com contornos de humor negro. O ministro pede mais um minutinho e a turma inteira ri. “Não, não quero atrapalhar”, diz o professor.
Por fim, Gilmar Mendes desliga. “Desculpe, amado mestre, é que eu estava aqui numa live com o meu amigo João Pedro Stédile, aquele do MST”. Mais risadas. O professor pergunta o que eles conversavam e o ministro explica que estavam discutindo a pandemia de Covid-19 e a responsabilidade do presidente genocida antes de se virar para a câmera, entortar os lábios para baixo e dizer seu aguardado bordão: “É para o bem da democracia”.
Mais risadas. O professor faz um comentário qualquer sobre o absurdo de um ministro do STF ficar de proselitismo político com um invasor de propriedade privada antes de dizer que a nota dele é... zero.
E assim avança o programa. Perguntas, piadas, bordões (o meu preferido é o “Vade mecum!”), risadas, notas zero.
Falando sério
No último bloco, porém, Brasileiro Qualquer/Raimundo resolve falar sério. Usando de seu tom mais professoral (!), ele se dirige à turma toda. Diz que estamos vivendo dias difíceis, solta alguma indireta para o presidente, outra para o Congresso, e daí resolve perguntar o que a turma toda acha da ideia de proibir ações policiais nas favelas cariocas dominadas pelo tráfico ou milícia.
Os ministros se manifestam. Mas a piada coletiva não tem graça. O professor, então, insiste, depois de mais um monólogo sobre a liberdade de expressão, sobre garantias constitucionais, sobre autoritarismo e principalmente soberba, pergunta se os nobres colegas acham sensato dar asas ao inquérito das fake news conduzido por Alexandre de Moraes.
E novamente os ministros falam e a resposta/piada não tem graça nenhuma. Lá do fundão, o ministro Marco Aurélio Mello tenta ser o único voto dissidente, como sempre. Mas os créditos já estão subindo e é hora de o Professor Raimundo brilhar. Ele encara a câmera, aponta para os ministros com o olhar, abre um sorriso nicotinado e, depois de se transformar na deusa Têmis (efeitos especiais by Hans Donner), faz um amplo gesto com as mãos e diz:
- E o salário, ó!
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