A Netflix vai insistir no erro. O grupo de humor Porta dos Fundos vai insistir no erro. Os fãs insistirão no erro. Os cristãos insistirão no erro. E, pensando bem, eu mesmo vou insistir no erro. Ou melhor, já estou insistindo ao escrever este texto depois de saber que os militantes do “poder transformador do riso” mais uma vez farão provocação religiosa com seu Especial de Natal.
O porquê dessa insistência sem graça eu não sei. Mas é bem possível que a Netflix tenha tabelas e mais tabelas de Excel justificando financeiramente o investimento na polêmica, na controvérsia, nas intermináveis discussões nas redes sociais. Deve ser o mesmo raciocínio que leva uma marca de absorventes íntimos a dizer que há homens que menstruam, correndo o risco, assim, de alienar todo o seu público consumidor conservador ou alheio à questão trans.
Já o porquê de os integrantes do Porta dos Fundos insistirem na fórmula é mais claro. Primeiro tem a preguiça. Sim, preguiça, porque desde que o grande Millôr Fernandes reescreveu a história de Adão e Eva e, por isso, foi demitido da revista Cruzeiro, na remota década de 1950, fazer piada com temas religiosos se tornou uma estratégia fácil e segura de chamar a atenção e, com sorte, provocar algum riso. Para que pensar em situações e personagens novos, que exigirão do publico espectador certas referências, quando há uma trama milenar inteira a ser explorada e que será compreendida por todo mundo?
Para rir do Evangelho não é preciso nem estar no controle de suas habilidades cognitivas. É tão fácil que, depois de uma visita à sua horta de “planta de artista”, até mesmo um delinquente moral pode escrever uma piada ou inventar um trocadilhozinho sujo com o nome dos apóstolos. É um humor infantil, do tipo que eu, aos 10 anos, maldosamente fazia com a minha avó. É um humor raso, que provoca pela afronta, e não pela capacidade de gerar dúvida.
Mas se é um humor infantil, raso e estéril, por que estou me dando ao trabalho de escrever este texto sobre o grupo Porta dos Fundos e seu oh-tão-subversivo especial de Natal? Porque haverá aqueles que vão chiar e processar e pedir boicote à Netflix. E capaz até de o presidente Jair Bolsonaro dar alguma declaração daquelas que deixam o povo do fascismo imaginário todo feliz. E, invariavelmente, haverá que diga algo como “quero ver fazer piadas com Maomé”. Sempre tem.
Quando, na verdade, o especial de Natal de Gregório Duvivier, Fábio Porchat e companhia não deveria nem fazer cócegas na alma do fiel que considera que sua fé está sendo ofendida. Deveria ser visto apenas pelo que é: um espasmo de rebeldia juvenil travestida de humor, incapaz de abalar as estruturas da fé alheia (a não ser que essa fé esteja alicerçada sobre a areia).
Ou você conhece alguém que, depois de sujeitar a esse tipo de humor, tenha renunciado à fé? Provavelmente não. Este, aliás, é outro erro no qual se insiste: acreditar que o humor preguiçoso e pretensamente herético seja capaz de influenciar a vida de outras pessoas que não os integrantes do grupo Porta dos Fundos, os envolvidos na parte técnica do filmete e os executivos da Netflix.
Mas o pior, ah, o pior eu deixei aqui para o final. O pior é constatar que a militância antirreligiosa do Porta dos Fundos não é capaz nem mesmo de gerar bons textos defendendo a liberdade de expressão ou, vá lá, a liberdade de ofender a fé alheia – para aqueles que acreditam nela, claro. São sempre os mesmos clichês, sempre a mesma vitimização, sempre os mesmos termos acadêmicos, sempre o mesmo raciocínio encurralado pelo pavor imaginário de se ver punido por uma transgressãozinha à toa. E sempre a mesma postura de confronto, quando não de birra.
Insistindo no erro, a Netflix vai lançar em breve o novo Especial de Natal do Porta dos Fundos. E, insistindo no erro, a peça de propaganda progressista vai causar mais repercussão do que merece. E, com essas palavras, declaro oficialmente aberta a temporada de textos sobre o Especial de Natal do grupo Porta dos Fundos.
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