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gaivota tchékov
“Mas de repente aparece um homem, ele a avista e, por pura falta do que fazer, ele a destrói, assim como aconteceu com essa gaivota”.| Foto: Pixabay

Depois do café da manhã, enquanto Nick Drake inunda a casa com a estranha mistura do fracasso bem-sucedido dos malditos, me sento com um livro em mãos. O tempo passa e o silêncio, em geral tão escasso, transborda. Ela me pergunta que bicho me mordeu. “Não vai me dizer que você está triste por estar lendo esse russo aí!”, diz. Não sei se é uma dúvida ou a acusação de que estou cometendo um crime imperdoável. Por via das dúvidas, nego e me desculpo. Mas a negação e a desculpa estão contaminadas pela mentira. Meu silêncio é culpa do russo mesmo.

Porque, diante de meus olhos, é como se Tchékov estendesse um espelho. Que me suga para um reino fantástico e inóspito, de uma melancolia que nunca desagua na depressão. Mas que, ó, às vezes chega a molhar os pezinhos. Este é o problema de ter sempre o riso torto à mostra: o silêncio, a outros tão comum, a mim às vezes soa como ofensa. “Não entendo por que você fica lendo essas coisas...”, diz ela. Com razão. Mas agora é tarde. Volto ao livro, bebendo pela terceira ou quarta da fonte da minha melancolia.

Em “A Gaivota”, Trigórin é confrontado por uma deslumbrada Nina, que idealiza a vida do escritor. Ela inveja o sucesso e o reconhecimento dele. Ao que Trigórin responde: “Eu vivo à caça de toda e qualquer expressão, cada palavra, as minhas e as da senhora, e me apresso a trancar logo essas palavras e expressões no meu depósito literário: um dia podem ser úteis! Assim que termino um trabalho, corro ao teatro ou vou pescar: quem sabe assim eu consiga descansar um pouco, me esquecer de mim mesmo, ah... Nada disso, dentro da minha cabeça, logo começa a girar uma pesada bola de ferro fundido, um novo tema para um conto, e logo eu me arrasto até a mesa e de novo tenho que escrever e escrever o mais depressa possível. E é sempre assim, sempre, nunca dou sossego a mim mesmo e tenho a sensação de que estou devotando a minha própria vida, tenho a sensação de que, para fabricar o mel que eu entrego, a esmo, para pessoas que nem mesmo sei quem são, eu retiro o pólen das minhas melhores flores, arranco da terra essas mesmas flores e pisoteio suas raízes”.

Leio quase até decorar. E me vejo obrigado a rir aquele riso silencioso que tem em si todas as dores de uma vida que se arrasta por mais de quatro décadas. Se substituir teatro por “filmes”, pesca por “Pesca Mortal” e conto por “crônica/artigo”, é de mim que esse efedepê está falando. Em seguida, Trigórin, à moda russa, reclama de ser para sempre um maldito – no sentido daltontrevisaniano, curitibaníssimo do termo. E continua a esfregar minha angústia na minha própria cara. Diretamente do finalzinho do século XIX. "Como é que pode?!", devem estar se perguntando os ateus.

Numa autocrítica deliciosa, mas que também pode ser vista como sádica, Trigórin fala sobre seu desejo reprimido de “representar a vida como nos sonhos”, desejo esse cotidianamente soterrado por obrigações outras. “(...) Eu adoro essa água, essas árvores, esse céu e sinto a natureza, ela desperta em mim um entusiasmo, um desejo irresistível de escrever. Mas não sou apenas um paisagista, sou também um cidadão, eu amo o país, o povo, sinto que, se sou um escritor, estou obrigado a falar do povo, dos seus sofrimentos, do seu futuro, sou obrigado a falar da ciência, dos direitos dos homens, etc. etc., e então falo sobre tudo, me afobo, me pressionam de todos os lados, se irritam comigo, eu corro de um lado para o outro (...)”, escreve Tchékov, dando voz a Trigórin.

Neste momento, fecho o livro e não consigo conter os soluços. “Sabia que esse russo aí te deixaria mal”, diz ela, numa reprimenda acompanhada pelo abraço de que preciso. Entre o choro que só não é convulso porque o clichê me incomoda, encontro uma brecha para fazer graça. “Sabe o que é pior?”, pergunto. Ela sabe, porque o amor nos fez desenvolver uma curiosa relação telepática, mas diz que não só por generosidade. “O pior é a gaivota que Trepliov mata e joga aos pés de Nina”. Ela ri. Eu rio. Sei lá por que estamos rindo.

Só sei que, depois de fazer referência à escravidão voluntária que me aprisiona num redemoinho de ideias todos os dias, o dia todo (!), Trigórin vê a gaivota morta e não hesita em anotar a ideia para um conto. Leio em voz alta o trecho que a caneta Bic se atreveu a sublinhar: “uma jovem vive às margens de um lago desde a infância, como a senhora; ama o lago, como uma gaivota, e é feliz e livre, como uma gaivota. Mas de repente aparece um homem, ele a avista e, por pura falta do que fazer, ele a destrói, assim como aconteceu com essa gaivota”.

Assim termina o segundo ato da peça. Fecho o livro e logo sinto “girar uma pesada bola de ferro fundido”. Saco o caderninho do bolso interno da sobrecasaca imaginária, a fim de anotar a ideia. “Falta do que fazer!!!!!/gaivota morta”, escrevo, antevendo os que, por puro tédio e uma perversidade da qual muitas vezes não se dão conta, haverão de aniquilar minhas tentativas de representar a beleza. E também mais esta minha gaivota.

Já no finalzinho da peça, uma desiludida Nina, depois de tentar a vida de atriz, diz que "o que importa [no trabalho] não é a glória, não é o esplendor, não é aquilo com que eu tanto sonhava, mas sim a capacidade de suportar. Aprenda a carregar a sua cruz e acredite. Eu acredito e, desse jeito, nem sofro tanto e, quando penso na minha vocação, não sinto medo da vida". Desculpe pelo parágrafo que mais parece um post scriptum, mas eu precisava que você também lesse isso.

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