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- Quem me acompanha aqui na Gazeta do Povo desde que comecei a escrever crônicas diárias sabe que adoro clichês. Ou melhor, adoro explorar o “potencial criativo” dos clichês. Já brinquei com o cronista flâneur, com aquela coisa do “disse sem dizer”, com o alfabeto e até com o tema preferido dos cronistas mais chatos: o chato. Ainda preciso explorar o clichê da crônica sobre a falta de assunto para uma crônica. Mas me falta a cara de pau.
- Falo sobre clichês para expor algo que já deve ter ficado claro aos poucos que chegaram a este segundo parágrafo: no texto de hoje, explorarei o clichê da crônica-lista ou crônica em itens. O recurso é usado sobretudo por aqueles que não dominam o uso da conjunção e que, portanto, não conseguem dar unidade ao pensamento.
- Mas não só. As crônicas escritas na forma de lista também atendem aos propósitos daqueles que querem abordar muitos assuntos, mas talvez estejam com pressa ou preguiça ou cansados demais para explorar apenas um aspecto deles em profundidade. Até porque às vezes o assunto requer apenas um mergulhinho na poça do conhecimento. Outras vezes o assunto ainda está fermentando, mas o prazo de entrega do texto se aproxima.
- Hoje, por exemplo, estava pensando em explicar que o Supremo Tribunal Federal foi concebido com dois propósitos nobres: nos proteger da tirania do Estado e legitimar moralmente, por meio da Constituição, os atos desse mesmo Estado. Mas o STF atual não faz nem uma coisa nem outra. Pelo contrário, tem agido como tirano e atuado para deslegitimar quaisquer atos do Estado por ora liderado por Jair Bolsonaro. Não é incrível?
- E aqui, se você é um leitor atento, percebeu que acabei de criar uma crônica interseccional clichezenta, misturando o clichê da crônica em itens ao clichê da crônica do “disse sem dizer”. E, se eu repetir a palavra clichê mais uma vez neste parágrafo, estarei adicionando à mistura o clichê da crônica metalinguística. Pronto. Taí.
- Também pensei em explorar o sentimento de “frustração” que parece tomar conta de uma parcela considerável dos apoiadores de Jair Bolsonaro. O que é compreensível. Parece que há dois anos o país testemunha o prenúncio de um conflito ideológico que nunca acontece para além das bravatas. Vivemos numa espécie de “O Deserto dos Tártaros”. E são grandes as chances de que, como o protagonista do livro, morramos sem ver uma só espada tirada da bainha.
- Mas daí me dei conta de que eram muitos os obstáculos a circundar. Primeiro haveria leitores que entenderiam a palavra “frustração” como uma declaração de derrota. Depois haveria os que entenderiam a mesma palavra como um chamado às armas. Eu também teria de explicar que a imagem da espada tirada da bainha é simbólica. Por fim, haveria os que me xingariam de “canalha”, bem como os que considerariam o texto “erudito” só porque citei o livro de Dino Buzzatti. Que, aliás, recomendo.
- Além disso, eu certamente irritaria ou sem querer provocaria o leitor que ainda vê virtude nessa guerra. E aí seria obrigado a dizer que, em “O Deserto dos Tártaros”, a parte que mais me comove é quando Giovanni Drogo, o protagonista, recebe a notícia de que será enviado para o front. Tão feliz. Tão sonhador. Tão esperançoso. E ainda assim de uma felicidade, sonhos e esperança reduzidos ao assombroso nada de uma vida que não se realizou. De alguém que viveu à espera do Grande Momento, sem perceber que o Grande Momento talvez esteja na morte.
- Por fim, crônicas em itens servem para que o cronista, geralmente condenado a raciocínios razoavelmente desenvolvidos, tenha a oportunidade de soltar um ou outro aforismo que ele acha genial, mesmo não sendo. Aquela frase que ele pensou no domingo à tarde, regurgitou por dois dias, experimentou com um amigo (que não gostou) e que agora publica aqui por graça e teimosia: “Melhor é uma boa palavra, mas poderia ser milhor”.
- Até que, aqui no último item, me dou conta de que as crônicas em lista têm esse lado todo melancólico. Ou talvez eu esteja embriagado de metafísica hoje. Vai saber. O fato é que, depois de ocupar o espaço que lhe é reservado, de cumprir seu papel e de, com alguma sorte, passar seu recado, as crônicas-listas acabam assim, sem avisar. Como um passeio no supermercado.