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O personagem desta crônica nasceu com um único propósito: exalar arrogância e votar nulo ou em branco (ele não tem certeza ainda).
O personagem desta crônica nasceu com um único propósito: exalar arrogância e votar nulo ou em branco (ele não tem certeza ainda).| Foto: Reprodução/ Senado

Este personagem se chama Rafael. Não é nenhuma referência indireta nem homenagem. Foi só o nome que ocorreu ao escritor na hora em que estava escrevendo a primeira frase. Como todo personagem que se preze, Rafael veio ao mundo com um único propósito e, para isso, nasceu já todo vestido com sua roupa de domingo. É que ele vai votar.

Como convém a um eleitor, pois, o personagem tem mais de 16 anos. O escritor que o concebeu assim apressadamente lhe conferiu outros atributos, a saber: orelhas pontudas como as de um elfo ou asno (por que não?), cabelos abundantes (por que não?) e, no bolso, um cartão de crédito sem limite (por que não?). Além disso Rafael é, para todos os efeitos, um menino inteligente – ou pelo menos esforçado.

Uma vez nascido Rafael, vale dizer que ele acabou de tomar um café da manhã reforçado a fim de participar da festa da democracia. [barulho de um prato jogado contra a parede] Cuidado! Tá todo mundo bem aí? Esqueci de avisar, mas Rafael é dado a ataques de violência quando escuta falarem em “festa da democracia”. E esta é outra circunstância do personagem que cabe ao escritor esclarecer: Rafael não acredita em democracia, não gosta de democracia, talvez até odeie democracia. "Sim, eu odeio a democracia", esclarece ele. E, por isso, Rafael está saindo de casa para votar nulo. Ou em branco – ele não tem certeza ainda.

A decisão de votar nulo/branco foi tomada há muito tempo. Antes mesmo de Rafael nascer. O escritor não sabe precisar quando. E é neste instante que o personagem se levanta para dar de dedo na cara de quem o criou com tanto amor e carinho e dizer que foi no dia 25 de setembro de 2021, numa discussão entremeada por sarcasmos e chistes, durante a qual Rafael percebeu que simplesmente era muito superior à ralé (palavras dele!) que “fica nessa disputa aí entre Jair Bolsonaro e Lula”.

O escritor, com toda a paciência do mundo, cogita argumentar que em 2021 não tinha nem pensado na possibilidade de escrever esta crônica, mas desiste. Seria perda de tempo. Vamos em frente com a história. E é melhor correr, porque Rafael já está lááááá longe, quase entrando na seção eleitoral. Repara, leitor, como o personagem empina o nariz e, todo garboso, cumprimenta os desconhecidos. E sobe um, dois, três lances de escadas até o salão nobre da escola Paulo Freire, onde, de dois em dois anos, é convidado a depositar esperanças difusas em uma ou mais pessoas com as quais ele jamais trocou uma só palavra. Rafael suspira.

“Esse aí não dá”, diz ele para o escritor – que nem lhe perguntou nada. “Esse outro também não”, acrescenta, sem que o escritor precise lhe pedir qualquer tipo de esclarecimento. “Pode botar aí na sua crônica que eu não tenho político de estimação”, pede, ou melhor, manda Rafael a um escritor que, na pressa, esqueceu o bloquinho de anotações. Além do mais, quem esse personagem acha que é para sair dando ordens assim? Não vou anotar porcaria nenhuma.

O escritor se perde nesse ressentimento inútil e, quando percebe, o personagem já está diante da mítica e, você sabe, infalível urna eletrônica. Sem ligar para os mesários, o escritor avança e se coloca ao lado de Rafael. Para deputado federal ele vota 9999, vira-se para o escritor e ri. “Quem se importa?”, pergunta. Para deputado estadual, 99999, a mesma risada e a mesma pergunta, resumida a um arquear sarcástico de sobrancelha. Para Senador, 999. “Ops, resvalei no botão aqui”, diz. Para governador, 99.

O personagem está prestes a votar para presidente quando é detido pela mão firme do escritor. “Me deixa!”, pede ele com algo de desespero na voz. Nessa hora, o escritor ainda tenta explicar que, neste exato momento, deve ter leitor confuso, pensando que esta é uma crônica de apologia à abstenção, de elogio ao voto nulo e em branco. “Duvido que tenha gente que pense uma coisa dessas!”, diz um Rafael subitamente surpreso. E, pela primeira vez desde que veio a este mundo, assustado.

O escritor, então, pede que o personagem explique ao leitor por que ele pretende votar em branco. “Não está claro já?”, pergunta Rafael, um tanto quanto impaciente. O escritor responde que não. Que o leitor quer tudo mastigadinho. Ainda mais numa crônica de sábado. Suspirando, revirando os olhos e fazendo biquinho, Rafael explica que vai votar em branco só para poder dizer que votou em branco. “Preciso mostrar que estou acima dos demais”, diz ele, com a honestidade sem filtros dos homens inventados.

Rafael aperta o botão da prepotência, ouve a musiquinha e vai embora se sentindo superior à ralé (palavras dele) que espera na fila. Já na rua, antes de desaparecer nos labirintos da imaginação do escritor, Rafael ainda tem tempo de perguntar se é verdade mesmo que alguns leriam a crônica como uma exaltação ao voto nulo e branco. “Eles não vão perceber como sou arrogante? Ridiculamente arrogante? Não captarão toda a minha soberba?”, pergunta Rafael. O escritor não responde. Afinal, o que nunca lhe faltou foi a esperança de ser compreendido.

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