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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Essa nossa mania de dar estrelinhas para tudo

Além de alimentar algoritmos perversos, as estrelinhas nos transformam em juízes implacáveis da competência alheia " sem espaço para o perdão. (Foto: Pixabay)

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Hoje em dia tudo se avalia. Você pede uma pizza e cinco minutos depois recebe o e-mail do aplicativo implorando para que se dê estrelinhas para o atendimento, a embalagem, o sabor e, se calhar, até a roupa do entregador. Você vai à farmácia comprar uma simples aspirina e lá está a maquininha pedindo e às vezes mandando que você avalie o atendimento com as tais estrelinhas – mesmo que você não tenha sido atendido por ninguém em sua sofrida busca por um remédio que aliviasse a dor de cabeça.

As estrelas governam nossa vida contemporânea. E não, não estou falando de constelações. Aos poucos, essas estrelas vão alimentando um monstrengo chamado “algoritmo” e acabam por determinar todas as nossas escolhas. De repente você percebe que deixou de comprar e ler aquele livro – aquele! – porque a ele falta a chancela das estrelas. Ou deixou de assistir a um filme ou de comer num restaurante. Percebe até mesmo que deixou de ler este texto que agora escrevo porque, bom, porque meus textos anteriores não foram aprovados pela grande divindade das Cinco Estrelas.

Nos últimos tempos, contudo, aprendi que as avaliações quase sempre revelam muito mais sobre o estrelador do que sobre o estrelado. Afinal, como justificar essa compulsão por avaliar tudo e, assim, tornar-se um pequeno algoz das reputações alheias? Como não perceber o prazer perverso contido na estrelinha solitária que parece transformar o motorista do Uber num barbeiro, o pizzaiolo num porco e o escritor num fracassado?

Que mundo melhor é esse?

Digamos, por exemplo, que você pegou um Uber caindo aos pedaços, com um motorista que não sabe ler placas de trânsito direito (avançou na preferencial sem nem olhar!) e com o ar-condicionado supostamente quebrado sob um sol de quarenta graus (vinte e cinco, para os curitibanos). Você entra no carro e já dá aquela bufada de ódio. E, a cada freada do motorista, sente crescer dentro de você aquela raivinha de criança mimada quando as coisas não saem exatamente do jeito que ela quer. Finalmente o carro chega ao destino e, sem hesitar, você vai logo avaliando mal o motorista. Só dá uma estrelinha porque é impossível dar estrelas negativas.

Na improvável hipótese de alguém perguntar, você dirá que deu uma estrela ao motorista (ou, como querem os novinhos, à experiência) para que os problemas não se repitam. Isto é, para transformar o mundo num lugar melhor, sem motoristas perdidos e com ares-condicionados que funcionam. Da mesma forma, você avalia mal uma pizzaria para que outras pessoas não tenham a mesma intoxicação alimentar que você e avalia mal um livro para que outras pessoas não percam o mesmo tempo que você perdeu lendo aquela porcaria. Em resumo, você é apenas um abnegado juiz do cotidiano, compartilhando experiências ruins – e bem de vez em quando algumas boas – a fim de transformar vidas. Ou algum blá-blá-blá do gênero.

Mas me deixe plantar a semente da dúvida nessa sua cabecinha tão cheia de virtudes. Já parou para pensar que talvez o motorista do Uber seja um... jornalista recém-desempregado que nunca dirigiu profissionalmente e que não teve dinheiro para trocar o gás do ar-condicionado na semana passada? (Vai ver ele nem sabe que precisa trocar o gás do ar). Ou que a intoxicação alimentar talvez tenha sido causada pela macarronada que você comeu no restaurante a quilo na hora do almoço, e não pela pizza que entregaram com cinco minutos de atraso? Ou ainda que o livro que você o-di-ou simplesmente o pegou num dia ruim?

No primeiro caso, eu lhe daria uma estrela por sua falta de compreensão. No segundo, uma estrela por suas preferências alimentares suspeitas. No terceiro, uma estrela por sua incapacidade intelectual de passar por cima dos problemas cotidianos a fim de mergulhar na experiência estética proposta pelo autor. Ou coisa assim.

Fico me perguntando que “mundo melhor” é esse que as pessoas imaginam estar construindo dando uma ou cinco estrelas para tudo o que fazem. Não, o motorista do Uber não vai aprender a se localizar bem na cidade de uma hora para a outra (e talvez não tenha dinheiro para consertar o ar-condicionado). Não, o pizzaiolo não vai se lembrar de lavar a mão depois de ir ao banheiro só porque você disse ter sofrido uma intoxicação alimentar. E não, o escritor não lhe pedirá desculpas só porque você não gostou das mal traçadas lá dele.

Patente pendente

Até por isso nos últimos tempos tenho usado um sistema de avaliação reverso (patente pendente). Se a experiência é excelente, isto é, se o Uber me trouxe em casa são, salvo e devidamente refrigerado, se a pizza não me causou uma diarreia e se cheguei ao fim do livro plenamente satisfeito, não hesito em avaliar com uma estrelinha esfarrapada, daquelas que nem brilham direito, se calhar até faltando uma perninha. Afinal, foram experiências que não me ensinaram nada, que cumpriram seu propósito sem me transformar.

Neste meu sistema reverso merecem cinco estrelas somente experiências traumáticas (ou transformadoras, dependendo do dia): sobrevivi não só ao ar-condicionado defeituoso do Uber como também a um capotamento. Fui ao hospital tomar soro depois de comer uma pizza estragada e me apaixonei pela enfermeira. Ou li um livro tão, tão, tão mal escrito que ao final dele só pude concluir uma coisa: escrevo melhor do que esse sujeito aí.

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