No Dia da Consciência Negra, uma agência de checagem andou espalhando por aí uma lista de meia-tigela, feita nas coxas mesmo, com palavras que, na cabecinha corrompida deles, denigre a honra dos negros. Além do espírito autoritário, o que chama a atenção na lista é como a etimologia é usada assim à toa, livremente. Ou melhor, sem qualquer apego à verdade.
Mas não quero prejudicar o nobre trabalho dessas pessoas que acreditam que palavras ferem ou matam. Pelo contrário, quero ajudá-las a serem ainda mais criativas e a eliminarem de uma vez por todas essas perigosas palavras que, ditas assim a esmo, são capazes até de causar falta de ar num militante distraído.
Assim, como pesquisador autodidata da origem das palavras, humildemente, e sem qualquer nota de rodapé, venho aqui propor que a lista de vocábulos e expressões de uso vetado seja cada vez mais ampliada, a tal ponto que voltemos a nos comunicar por grunhidos e, a partir daí, elaboremos um novo idioma tão puro quanto a visão de mundo de um militante identitário.
Aos críticos fascistas de plantão aviso que não reconheço qualquer eventual e improvável discrepância que se queira apontar entre a etimologia aqui apresentada e a etimologia consagrada em obras escritas por homens héteros, brancos e barrigudos.
Bom dia
Poucas expressões da língua dos colonizadores portugueses são tão carregadas de racismo quanto “bom dia”. Repetida desde tempos imemoriais pelo patriarcado, o “bom dia” chegou ao Brasil na caravela de D. Pedro I. Tendo aportado na Bahia dispostos a fundar o primeiro feudo protofascista do mundo, os portugueses foram recebidos com amor e igualdade pelos ingênuos irmãos indígenas.
Na manhã do dia 23 de abril de 1500, contudo, o patriarcado branco acordou e, percebendo a oportunidade de explorar os primitivos puros, disseram “Bom dia” a seus hospedeiros. Com o passar do tempo e o raiar de todos os dias, a expressão foi repetida por senhores de engenho, jesuítas, bandeirantes, caudilhos, barões do café e até pela pequena burguesia escravocrata dos centros urbanos. Recomendo que o “bom dia” seja devidamente substituído por “bom dia para pedirmos reparação pelo sofrimento dos nossos ancestrais”.
Pronomes possessivos
Vejo com estima a campanha dos companheires para serem tratados por seus pronomes pessoais preferidos, e não mais pelos pronomes que a gramática cisnormativa lhes impõe. Por outro lado, a luta progressista jamais chegará ao proletariado se continuarmos usando palavras feias, bobas e caras-de-mamão para designar aquilo que é “nosso”. Já está mais do que na hora de usar o método de Paulo Freire para ensinar aos explorados a origem dos meus, teus, deles, nossos, vossos, deles pronomes possessivos.
Os pronomes possessivos são herança do nosso passado capitalista. Graças à ascensão de Lula, o Bom, os pronomes possessivos passaram 16 anos no ostracismo. Nada era de ninguém e tudo era de todos. Ou melhor, todes. Depois do golpe contra Dilma, a Boa, os pronomes possessivos ressurgiram com o regime totalitário de Bolsonaro, o Mau, eleito antidemocraticamente pelas elites, com a ajuda do sistema financeiro internacional, as milícias e os cristãos fanáticos da ultradireita.
Problema
Assim como a revolucionária palavra “dibre”, que a muito custo conseguiu se livrar, primeiro, da sua herança imperialista ianque e, depois, de seu elitismo consonantal trava-língua, “pobrema” – a forma politicamente ideal – luta para ter um verbete para chamar de seu no dicionário da língua colonizadora brasileira. Afinal, só a ultradireita fala “problema” com todos os encontros consonantais. Aliás, “pobrema” é o que atinge de fato a população necessitada: transfobia, linguagem binária, encarceramento em massa e emergência climática. Já “problema” é o que as elites acham que atinge a população necessitada, como saneamento básico, fome, analfabetismo e criminalidade.
Gol!
“Eu, felizmente, não gosto de futebol! Acho que é uma sociabilidade masculina que se afirma contra a homossexualidade”. Depois de ler essa frase do filósofo Jean Wyllys, você jamais conseguirá gritar “gol!” de novo. E, se você não estiver convencido, quero expor aqui uma velha teoria que acabei de inventar e que diz que “gol” é, na verdade, abreviação de “good old life” (a velha e boa vida), expressão que celebrava o tempo em que a Inglaterra dominava o mundo, escravizando as minorias, enforcando homossexuais e empregando crianças nos romances de Dickens – tudo para manter os privilégios da monarquia absolutista que vinga até hoje.
Descascar alho
Você talvez nunca tenha percebido, mas o simples gesto de descascar alho é uma afronta à dignidade de muitas minorias historicamente discriminadas, mas cujos nomes me fogem no momento. As origens da expressão são controversas. A corrente patriarcal heteronormativa (portanto, fascista) há séculos espalha a desinformação de que descascar alho é uma expressão absolutamente inofensiva. Ela teria surgido depois que uma das personalidades brancas lá deles pegou uma cabeça de alho e, sem explorar qualquer trabalhador, a descascou lentamente. Sem graça, né?
Mas a gente sabe que isso é mentira. A verdade verdadeira (e, se não é, fica sendo) e muito mais interessante e útil à causa é que “descascar alho”, além de um ato político-culinário, tem a ver com a morte, nos porões da ditadura, da militante ecoblacksocialista Efigênia Maria de Figueiredo, mais conhecida pela alcunha de Bezerra e imortalizada na infeliz expressão popular “a morte da bezerra”, tema do nosso próximo verbete.
A morte da Bezerra
Num modorrento dia de primavera, Efigênia Maria de Figueiredo caminhava pela rua, levando consigo panfletos do Partido Comunista, quando aparentemente desapareceu. Sumiu. Assim, de uma hora para outra. Mais tarde, contudo, soube-se que a moça, estudante de jornalismo, foi a primeira vítima de um instrumento de tortura e execução desenvolvido pela CIA para eliminar os dissidentes políticos da Ditadura Militar brasileira – que, como todo mundo sabe, foi a mais sangrenta de todos os tempos.
Um senhor protobolsonarista que estava ali de passagem viu tudo. O nome do dito-cujo se perdeu na história, ou melhor, estória (bença, Paulo Freire), mas tudo indica que se tratava de um antepassado do guru extremista Olavo de Carvalho. Que seja. O fato é que, diante do sumiço misterioso da Bezerra, o velho ficou paralisado no meio da rua.
Um operário sindicalizado que pilotava sua bicicleta a caminho da fábrica (onde com certeza seria explorado pelas oligarquias capitalistas/militares), revoltado com o estado lastimável da democracia naquele tempo, quase atropelou o antepassado do Olavo e, educadamente, gritou: “Não olha por onde anda, rapá? Tá fazendo o que parado aí no meio da rua, mermão?”. Ao que o antepassado do Olavo, alienado e em conluio com a tirania verde-oliva, respondeu: “Tô pensando na morte da Bezerra”.
Ranho
Nada mais triste do que uma criança favelada pedindo dinheiro no semáforo e com o nariz escorrendo, aquela melecona verde pendurada nos lembrando da desigualdade social, da desvalorização da nossa moeda e do fascismo latente em nossa sociedade. Mas pior do que tudo isso é se referir à meleca como “ranho”. A palavra, talvez você não saiba, tem origem escravocrata-imperialista.
Ela vem de “running nose”, que é como os fazendeiros estadunidenses que derrubaram metade da Amazônia (o pulmão do mundo!) para plantar algodão no território Yanomami chamavam os cativos ranhentos. Isso, claro, antes de 1888, quando Zumbi dos Palmares liderou uma revolução que pôs fim à escravidão no Brasil, expulsou os capitalistas malvados, instaurou no país a democracia e, só por diversão, fundou o STF.
Maionese
Em 1756, o duque de Richelieu tomou a cidade de Port-Mahon, capital da ilha de Minorca. Para celebrar o feito, o chef do duque promoveu um banquete. Na falta de leite para misturar com ovos, o chef usou azeite, dando origem a um novo molho, posteriormente chamado mahonnaise. Ao contrário das etimologias acima, esta é verdadeira. Mas que parece invenção de agência de checagem comprometida com a desinformação quando lhe convém, ah, isso parece.
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