[420 - Começar um texto] Estou aqui há horas pensando numa forma de convencê-lo a assistir ao estupendo Every Brilliant Thing (Todas as coisas maravilhosas), de Duncan Macmillan e Jonny Donahoe. É mais difícil do que parece. O filme está classificado como “documentário”, mas não é. E o problema é que é bem provável que você saia correndo, com as mãos para o alto e gritando desesperadamente se eu disser logo do que se trata o filme.
Mas não tem jeito. Uma hora eu vou ter que falar, fazer a sinopse, aquela coisa toda. Antes, porém, e aproveitando esse tempinho extra para pensar mais um pouco, vale a pena dizer que cheguei a Every Brilliant Thing por puro acaso [9 – Acasos felizes]. Não tinha nenhuma referência do título, dos autores, dos atores. Nada. Simplesmente vi o nome, gostei e dei um jeito de assistir ao filme.
Foi a melhor decisão que eu poderia ter tomado naquele dia. Every Brilliant Thing é uma das melhores coisas a que assisti recentemente. É inteligente, engraçado e triste na medida certa, incrivelmente bem interpretado e cheio de momentos que ficam na memória. É tão bom que a gente esquece que está assistindo a uma coisa que odeia e pela qual nutre até certa repulsa [43 – a sensação de estar ultrapassando algum limite de empolgação].
É, não tem jeito. Chegou a hora. Me sinto na obrigação de informar ao leitor que Every Brilliant Thing, apesar de ter sido exibido na HBO e de ter sido classificado como “documentário” no IMDB, não é exatamente um filme. Está mais para um espetáculo de stand-up comedy. Ah, quem eu acho que estou enganando? Não é nada disso. É uma peça de teatro. Pior: uma peça de teatro interativa.
Depressão e A Lista
Imagino que neste instante vários leitores tenham desistido de ler o texto. Mas não você. Porque você é curioso e sabe que eu não recomendaria uma peça interativa filmada em preto e branco se ela não fosse realmente boa [579 – a sensação de intimidade com o leitor].
O texto é absolutamente amargo. E de uma beleza descomunal. Não espere grandes frases de efeito ou então metáforas que ninguém entende – características do teatro contemporâneo. Não. Apesar de absolutamente pós-moderno em vários aspectos, Every Brilliant Thing é também bastante conservador nos recursos estéticos: uma história linear pontuada por música, com um epílogo apoteótico, daqueles de fazer até mesmo o espectador mais durão suar pelos olhos.
Na peça, um homem conta como lidou, ao longo de toda a vida, com a depressão grave da mãe. Ainda criança, depois da primeira tentativa da mãe de pôr fim à própria vida, ele tem uma ideia: fazer uma lista de todas as coisas pelas quais vale a pena viver. É mais ou menos o que o personagem de Woody Allen faz numa das cenas finais de Manhattan e que já citei aqui. Sem a sofisticação de Isaac, o menino lista coisas como “a cor amarela” e “ver uma pessoa tropeçando”.
A lista de nada adianta e a mãe não melhora. A depressão dela persiste, assim como as tentativas de suicídio. O menino envelhece e a lista só aumenta. Quando descobre o amor, a lista já passa das mil, dez mil, cem mil coisas. Rumo ao milhão. E, de fato, quando você se senta para pensar [3.456 – driblar a reforma ortográfica e evitar o “para para”], são muitos os detalhes da vida que a fazem valer a pena.
E, no entanto, por depressão ou, mais comum, por distração, é raro quem se dê conta disso diariamente. As pessoas preferem bater boca na Internet a [76 – o som distante de um trovão], [928 – o café com leite da cor perfeita], [9021 – passar ridículo e perceber que não foi tão ruim assim] ou [12019 – o último gole da garrafa de Coca-Cola].
Comunhão de vulnerabilidade
Agora me dei conta de que você pode estar pensando que Every Brilliant Thing não passa de uma grande lição de moral sobre depressão e suicídio. Um discurso simplista sobre dramas tão complexos. Nada disso! O filme/peça é, antes, uma reafirmação de que não podemos compreender o que leva uma pessoa a um gesto tão extremo. E, se somos incapazes de compreender, por que haveríamos de julgar?
Em Every Brilliant Thing, o desgastado e constrangedor recurso da interatividade entre ator e plateia não é usado para causar incômodo a quem assiste. Quero dizer, talvez você se coloque no lugar da pessoa e sinta um pouco de vergonha. Mas logo se percebe diante de uma comunhão de vulnerabilidade [23.231 – escrever coisas como “comunhão de vulnerabilidade” e imaginar meu editor espumando de raiva] e se pega querendo participar também.
Mais do que isso, ao fim do filme é quase impossível resistir ao impulso de pegar um caderno e começar a citar todas as coisas maravilhosas que há na vida. Por coincidência, há mais ou menos um ano comecei a fazer isso no Twitter. Se me lembro bem (o que é improvável), a lista começava com “o solo de Slash em Estranged” e incluía coisas como “pôr o ponto final num texto”, “chorar de rir”, e “árvores”. A ideia era chegar a cem coisas. Mas, como a lista se perdeu, não tenho certeza se consegui chegar a esse número.
Every Brilliant Thing não é fácil de achar. Além disso, o filme exige que você passe por cima do seu preconceito (legítimo) contra o teatro. Mas vale o esforço e o sacrifício. E, se depois de uma hora, você não se sentir uma pessoa um pouquinho transformada, não tem problema. Quero dizer, até tem, porque isso significa que falhei miseravelmente em me expressar. Mas paciência [8754 – tentar, sabendo que fracassar é sempre uma possibilidade].
Porque, como bem dizia o velho Manuel Bandeira, às vezes as almas são incomunicáveis.
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