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Recebo uma carta. Não sei como descobriram meu endereço, mas recebo. É um envelope neutro com um selo padrão dos Correios. Saudade de quando os Correios emitiam uns selos bonitões que iam direto para a água com vinagre e, depois, para a minha coleção. Meio desnorteado com aquele meio primitivo de comunicação, abro apressadamente o envelope para descobrir dentro dele um tratado que consome 3 papéis-de-carta dos Ursinhos Carinhosos.
Assina a missiva uma tal Linda Pretty. A letra é trêmula e insegura, mas evito tirar conclusões apressadas disso porque faz tempo que não escrevo à mão, então é possível que minha letra parecesse tão trêmula e insegura quanto. Ao longo das páginas, ela faz uma longa defesa do PT (“um partido social-democrata – única ideologia que deu certo no mundo”) e de Lula (“só quem ataca Lula é quem nunca olhou dentro daqueles profundos olhos castanhos”). Mas não de Dilma. (“Se não fosse por ela, talvez o Brasil pudesse estar vivendo hoje um segundo mandato de Aécio. Já pensou?”, escreve Pretty, Linda).
A letra vai se amiudando à medida que a carta avança. Tanto que, no parágrafo final, aquele que nos interessa aqui, estou quase buscando uma lupa para tentar decifrar as marcas no papel. Dois borrões mais ou menos paralelos me fazem pensar que talvez Linda Pretty estivesse chorando ao me escrever. Que dó. De qualquer forma, lê-se ali, pouco antes do “XXOO”:
“Como o senhor bem sabe, ou parece saber, o Brasil é o país do ‘se’. Estamos sempre pensando no que teria sido dessa nação SE 1) Napoleão não tivesse invadido Portugal, 2) o Marechal Deodoro tivesse ficado em casa, de pijamas; 3) Getúlio não tivesse dado um tiro no peito; 4) a guerrilha do Araguaia tivesse ganhado a guerra; 4) Tancredo não tivesse morrido antes da posse; 5) Lula tivesse ganhado de Collor; e, finalmente, se 6) naquela salinha secreta lá do TSE alguém tivesse encontrado uma forma de tornar o Haddad vencedor”.
Um país esteticamente perfeito
Minha reação imediata foi jogar a carta num canto e dizer para uma Catota bastante compenetrada que é besteira imaginar como seria o Brasil se certos eventos do passado não tivessem ocorrido exatamente como ocorreram. “Em retrospecto, o passado é sempre inevitável”, como tuitou Elon Musk, provavelmente citando alguém. Bolsonaro era inevitável, a facada era inevitável, a vitória era inevitável. E tudo o que aconteceu desde então era inevitável.
Mas atiçar a minha imaginação é mais fácil do que acalmá-la. Me deito na esperança de pegar no sono rapidamente, como sempre acontece, mas assim que fecho os olhos dou uma de Alice e entro na toca de coelho das fantasias políticas. E não consigo dormir. Fico imaginando o governo Haddad em todos os seus aspectos, macros e micros, e chego à conclusão de que o Brasil seria um lugar muito melhor. Não necessariamente em termos reais e palpáveis. Mas, em se tratando de estética, ah, quanta diferença.
Veja o caso do estudo obscuro que considerou o Brasil o pior país do mundo todinho no trato da pandemia. Essa vergonha jamais passaríamos com o presidente Haddad. Não que o Brasil estivesse cuidando melhor dos doentes. É que, esteticamente, estaríamos mais próximos do que os progressistas (petistas, psolistas e outros istas) consideram o ideal. Não só Haddad falaria as coisas certas (texto finamente redigido por um corpo de redatores experientes na manipulação da realidade) como também teríamos os maiores e mais caros hospitais de campanha do mundo. E viva o SUS!
Também as manchetes seriam diferentes. A sinovacina estaria sob um escrutínio maior porque, afinal, é coisa do PSDB. Se bem que também é coisa da aliada China. Ah, sei lá. Só sei que o chanceler Jean Wyllys daria um jeito. Os números absolutos de mortos seriam substituídos pelas proporções. E, se o presidente-professor sugerisse que quem sabe talvez numa dessa o tal do tratamento precoce funciona, bom, temos que investigar isso aí. “Não podemos tirar conclusões apressadas”, diria o ministro Iamarino. A única objeção talvez fosse feita pelos defensores da homeopatia e cromoterapia.
Nas eleições legislativas também a situação seria muito diferente. Até porque rumaríamos tranquilamente para um terceiro mandato de Sir Rodrigo Maia – por ordem e graça do ministro José Eduardo Cardozo, recém-nomeado para o Supremo Tribunal Federal pelo presidente Fernando Haddad.
Estaríamos, ainda, livres daquelas horríveis lives de Jair Bolsonaro. Com aquela gente jeca e sem talento. Para se aproximar do “povo”, o presidente Haddad faria transmissões nas quais, empunhando seu violão, tocaria canções especialmente compostas por Chico Buarque, tratando dos problemas mais graves enfrentados pelo brasileiro, como a transfobia e gordofobia. Eu disse problemas? Devo estar ficar louco. Que problemas?! Afinal, é da administração Haddad que você está falando, Paulo.
O imperfeito participa, sim, do passado
Acordo meio assustado. São 23 horas da madrugada. Por impulso, pego o celular no criado-mudo (termo que a administração Haddad proibiu) e entro nas redes sociais para ver o que está acontecendo. De cara me deparo com pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro, liberação recorde de emendas parlamentares (coisa que jamais aconteceria com o presidente-professor), xingamentos de “genocida”. Suspiro, entre a resignação e o alívio.
De volta à realidade inexorável e insubstituível, me levanto e saio pela casa à procura de papel e caneta (como é que se usa esse negócio?) para responder à sra. Linda Pretty que, ao contrário do que dizia Renato Russo, o imperfeito participa, sim, do passado. E que bom que é assim. Afinal, é a imperfeição desse passado, composto por zilhões de presentinhos que vão ficando para trás a cada nanossegundo, que permite que abdiquemos da elucubração danosa e risível do futuro do pretérito e seu irmão ainda mais perverso, o pretérito imperfeito de um subjuntivo cheio de mágoa, revanchismo e utopia.