A gente percebe a decadência de uma instituição cultural quando ela precisa de elementos externos à arte para se promover. Foi o que aconteceu com os salões de pintura depois que a biografia dos artistas se tornou mais relevante do que suas obras. Idem para as academias literárias, sobretudo em suas versões mais populares. O que eu não imaginava é que viveria para ver essa irrelevância tomar conta do cinema.
Não. As gerações futuras não discutirão se foi tudo jogo de cena. Tampouco darão razão a um ou a outro. Muito menos verão improváveis virtudes em quem agrediu ou foi agredido – e não reagiu. Ninguém nem se lembrará do que motivou o tapinha de Will Smith em Chris Rock na cerimônia de entrega do Oscar naquele remotíssimo, tenebroso e ridículo ano de 2022.
Porque, pelo andar da carruagem, ano que vem teremos outro escândalo. Talvez um ator negro estapeie um ator branco, a título de reparação história. Talvez uma atriz estapeie uma mulher trans, revoltada por perder o Oscar para um homem biológico. Talvez haja uma sangrenta batalha de atores androides diante de uma plateia de hologramas em trajes de gala. Assim será até o Oscar se transformar num evento circense que um dia teve alguma a coisa a ver com o que passava na tela grande.
“No Ritmo do Coração”
Se eu fosse conspiracionista, diria que a piada calvofóbica calada "à força" no palco daquela que deveria ser a maior celebração do cinema teve por objetivo ofuscar a surpreendente vitória de um filme como há muito não se via agraciado com as cobiçadas estatuetas: “No Ritmo do Coração”.
Como se percebe, até o título é démodé. Sem falar nos personagens, ambientação, falas, figurinos, dramas internos, clímax. “No Ritmo do Coração” parece ter sido feito a partir de tudo aquilo que Hollywood jogou no lixo nos últimos 30 anos. Inclusive, não posso deixar de mencionar, a dulcíssima pieguice das melhores cenas do filme. Em outras palavras, ele é tão conservador que soa até reacionário. É um filme tão antiquado que parece à frente do seu tempo.
E é principalmente um filme com os sentimentos nos lugares certos. Que, por consequência, desperta no expectador esse mesmo desejo de pegar uns sentimentos que a vida vai colocando nas gavetas erradas e colocá-los em seus devidos lugares. O amor e a dedicação de uma adolescente à família, por exemplo. Ou a opção por se reagir a uma injustiça com empenho, não com vitimismo. Ou ainda o perdão dado quase que à toa ao ser amado.
Tem gente que não gosta. Muita gente. O que é mais do que compreensível. Afinal, fomos ensinados a valorizar apenas a arte que é "um soco na boca do estômago". Arte se tornou sinônimo de incômodo. Qualquer coisa que cheire a contemplação, portanto, é vista com desconfiança e rejeição. "Tire da minha frente essa coisa que mostra que a vida é boa!", gritam os cinéfilos hoje. O feio virou o belo e o belo virou o feio.
“No Ritmo do Coração” faz algo que o cinema sempre fez muito bem ao longo do século XX: alçou a realidade à condição de fantasia. Naturalmente. Sem ressentimento, o filme mostra dificuldades com as quais o espectador se identifica. E soluções para essas dificuldades - com as quais o espectador também se identifica. Porque ele não quer depender do Estado para superar o bullying nem para realizar sonhos artístico. E tampouco quer se encher de droga ou sair por aí atirando. O mundo de "No Ritmo do Coração" não é um mundo que se quer consertar por meio da violência.
O espectador sempre contou com o cinema para lembrar que é possível. Para lembrar que, se ele tentar, consegue (conquistar a menina dos sonhos ou resolver um mistério ou superar grandes dificuldades). Para lembrar que ele, se não é intrinsecamente bom, ao menos tem a bondade dentro de si. Para lembrar que há dramas pequenos e muito palpáveis que vão além do dramalhão das redes sociais – e neste exato momento há pessoas lutando para acordarem positivamente transformadas no dia seguinte.
São essas coisas o que o espectador encontra em “No Ritmo do Coração”. O filme, portanto, representa a esperança de que um dia voltaremos a olhar para dentro a fim de reencontrarmos essa capacidade de fazermos os outros felizes. Só porque é bom demais.
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