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A vida do pastor e apresentador norte-americano Fred Rogers foi dedicada a fomentar nas crianças a confiança e o respeito. Mas não demos ouvidos a ele.
A vida do pastor e apresentador norte-americano Fred Rogers foi dedicada a fomentar nas crianças a confiança e o respeito. Mas não demos ouvidos a ele.| Foto: Reprodução/ Netflix

Você pode até não acreditar em milagres, mas eles existem. Nem que sejam disfarçados de “coincidências”, a fim de serem admirados pelos mais céticos. Hoje, por exemplo, estava meio desanimado ao abrir aquela rede social que não vê nada de mau em traficante fazendo apologia da violência, mas ai ai ai se você disser que lockdown não funciona. Logo de cara, contudo, me deparei com uma mensagem que trazia um versículo do Gênesis, para logo depois perguntar: “E você? Sabe de onde vem? Sabe onde está? Sabe para onde vai?”.

Em seguida, na mesma rede social da eterna guerra de hashtags, um amigo compartilhou a célebre carta de George Bush (pai) a Bill Clinton, quando da posse do democrata. Escrita num longínquo e mais simples 1993, a carta diz, num tom extremamente cordial, que Bush, derrotado numas das eleições mais duras da história (até então), sabia o que o vencedor, Clinton, estava sentindo no momento em que entrou em seu gabinete: felicidade e respeito pelo cargo. Depois de aconselhar Clinton a não esmorecer diante de críticas ruins, Bush conclui com: “Seu sucesso agora é o sucesso do nosso país. Estou torcendo muito por você”.

Usada como símbolo de uma tolerância e respeito há muito perdidos no debate político, a carta me fez recorrer imediatamente ao versículo recém-lido e aqui recém-citado, e perguntar para o apartamento vazio: “Como chegamos até aqui?” Afinal, você é capaz de imaginar os políticos atuais, tanto aqui quanto lá, expressando o mesmo espírito público e a mesma fé de que seu sucessor, ainda que professando ideias diferentes das suas, fará o melhor?

Há quanto tempo você não se deixa convencer?

Há dezenas de milhares de artigos e livros e teses que tentam explicar como chegamos a este estado de coisas. Uns mais, outros menos aborrecidos. Geralmente são textos tristes que, não raro, assumem um tom catastrofista e fatalista para então expor o bode expiatório da vez: a democracia, o neoliberalismo, o patriarcado, o globalismo, George Soros.

Pois eu troco todas essas explicações caudalosas e enfadonhas pelo terceiro elemento do meu milagre matinal: o documentário “Won’t You Be My Neighbor?”, sobre o lendário apresentador norte-americano Fred Rogers (por sinal, tema de um filme com Tom Hanks). Na verdade, são dois trechos que me iluminaram.

No primeiro, o apresentador está diante de uma audiência no Congresso norte-americano. O que está em jogo são US$20 milhões destinados à PBS, a televisão pública deles. Rogers, que apresenta um famoso programa infantil na PBS, obviamente não quer que a TV pública seja extinta. Mas ele tem diante de si o senador John Pastore, que defende abertamente a extinção do canal. E que ganha votos com essa plataforma (cujo mérito não vem ao caso neste texto).

Depois de dias de audiência, tudo leva a crer que a televisão pública será extinta. Para piorar a situação, Rogers está prestes a se manifestar quando o senador diz, mal-humorado, que está cansado de ficar ouvindo os depoentes lendo seus argumentos. Rogers evidentemente tinha levado um depoimento por escrito também. Eis que Rogers, depois de uma introdução, desiste de ler o que havia preparado e declama uma canção cujo primeiro verso é “O que você faz com a raiva que sente?”

Diz o restante da música:

Quando você está com tanta raiva que quer morder?

Quando o mundo todo parece tão errado

E nada do que você faz parece certo?

(...)

É ótimo poder parar

Quando você planejou fazer algo de errado

E conseguir fazer outra coisa

E pensar no que eu digo:

Posso parar quando quiser

Posso parar quando desejar

Posso parar, parar a qualquer momento

Sabendo que há algo de mais profundo.

Depois dessas palavras, o senador Pastore responde simplesmente que “isso [a música] é maravilhoso”. Ele percebe que extinguir a TV pública naquele momento seria um erro cometido com a melhor das intenções orçamentárias, mas baseado em premissas filosóficas erradas. E conclui dizendo que Rogers tinha acabado de conseguir os US$20 milhões para a PBS.

Há tempos não vejo ninguém (no debate público, digo) se deixar convencer. Há tempos não vejo ninguém ouvir, realmente ouvir, um argumento. Ora, muitos não se permitem nem rir porque pressupõe na piada todo tipo de vilania. Que dirá permitir que palavras o transformem. Há tempos não encontro homens públicos (ou privados) com autodúvidas saudáveis. O que vejo é uma abundância de convicções sem outra base que não a paixão política.

Ciclo interminável de agressões

O segundo trecho, já no final do documentário, é o mais revelador de como chegamos a este estado de coisas. Estamos em 2001 e Fred Rogers morreu "com as esperanças intactas", como era seu desejo. Do lado de fora de seu funeral, um grupo protesta com os tradicionais cartazes de “ódio do bem”. Eles dizem que os ataques de 11 de setembro de 2001 foram um castigo de Deus e que Rogers vai para o inferno porque tolerava gays.

Entre os manifestantes, algumas crianças – o público-alvo de Rogers. Meninos e meninas que cresceram expostos a um debate público tóxico, num ambiente onde o berro é aceito como argumentação. Uma garotada que não foi devidamente protegida do mundo adulto e que precocemente vê suas piores fantasias infantis se misturarem à realidade belicosa. Crianças com sólidas convicções quanto a quem merece o inferno e por quê. Ao lado dos pais, elas desonram o funeral de uma pessoa, defendendo uma causa que não têm maturidade nem interesse real em defender.

Corrompidas pelos pais, pelos professores, pela sociedade, essas crianças de 2001 devem ter hoje seus 30 anos, se tanto. E são elas que estão por aí derrubando estátuas, defendendo censura à opinião contrária, cancelando os dissidentes, fazendo a transição ideológica para o gênero oposto, impondo ao mundo sua religião secular baseada na hipocrisia e invadindo o Capitólio dos Estados Unidos. Entre outras traquinagens indignas da idade.

É toda uma geração que não lida bem com a raiva. Nem com a frustração por ter planejado revoluções que, apesar das professadas boas intenções, se revelaram moralmente erradas. Incapaz de parar, de parar quando quiser, de parar quando bem desejar, de parar a qualquer momento, pondo fim ao ciclo aparentemente interminável de agressões.

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