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“Friends”, uma das últimas produções da Era de Ouro das sitcoms, vai ter um episódio especial de reunião dos personagens. A (minha) esperança é a de que o programa, intitulado simplesmente “Aquele em que Nos Reunimos” e que deve ir ao ar em junho, pela HBO, tire um pouco o foco da pandemia, da política brasileira e do progressismo radical. Mas só porque sou um otimista incorrigível mesmo.
De uns tempos para cá, sobretudo entre meus contemporâneos mais ou menos esclarecidos, virou moda dizer que “Friends” é ruim. Nada faz sentido, diz um. Série com claque não dá, diz outro. Não suporto o personagem X, Y ou Z. Idiossincrasias à parte, para mim a ojeriza a “Friends” parece uma rejeição mais emocional do que estética de uma geração (a minha) que não percebe como o enlatado ajudou a moldar nossa vida.
Não que tenha sido uma influência boa. Longe disso. Hoje sem cabelos, com uns quilos em excesso e muito mais bagagem do que gostaria, noto como “Friends” levou toda uma geração a assimilar valores progressistas que hoje nos soam naturais. Veja, por exemplo, a vida sexual dos personagens. Tudo é fácil e descomplicado e descartável. Foi assim, com uma piadinha aqui e outra ali, que “Friends” ajudou a consolidar a liberalidade sexual dos anos 1960, mesmo tendo estreado logo depois da epidemia de AIDS dos anos 1980.
Outra instituição fundamental que a série sutilmente influenciou foi a família. Em “Friends”, os pais, mães e irmãos dos personagens são quase estranhos, quando não francamente antagonistas. É o caso, por exemplo, dos pais de Chandler (um travesti e uma escritora de livros eróticos) e de Mônica (mãe controladora).
A própria forma como vemos o processo natural de amadurecimento foi influenciada por “Friends”. Na série, pessoas com mais de 20 anos, que já deveriam ter se descoberto na vida, estão com um pezinho existencial na adolescência. E tudo isso é mostrado com tanta naturalidade que hoje não vemos nada de muito revoltante na adolescência tardia, que em alguns casos se estende aos 40 anos.
Por fim, “Friends” influenciou profundamente a instituição que dá nome à série ao mostrar, ao longo de dez temporadas, a amizade como um valor inegociável (o que é bom), mas baseado num ideal inalcançável (o que é ruim). Os amigos ocupam o lugar da família, dando origem a personagens totalmente moldáveis pelo meio, porque precisam se mostrar o tempo todo dignos de afeto. É cansativo, sim. Mas também é muito presente hoje em dia.
Independentemente dos valores morais da série, tanto conservadores quanto progressistas têm algo a aprender com “Friends”: o poder da sutileza. As mudanças que descrevi acima são todas de tendência progressista. Mas elas não nos foram impostas por roteiristas militantes radicais. Bem pelo contrário, as pessoas assimilaram a vida sexual libertina dos personagens aos poucos. Não foram necessários slogans ou falas gritadas ou expressões de ressentimento ou birrinha.
Que a sutileza de “Friends” tenha sido usada para promover valores progressistas não é surpresa para ninguém. A arte popular sempre foi um instrumento de propaganda política admiravelmente sutil (e, por isso mesmo, eficaz). E continua sendo, porque ninguém se convence de nada quando afrontado. Daí a importância de aprender a inocular valores conservadores também com paciência e sutileza. Uma piadinha por vez.
Mas eu dizia que espero que o episódio de reunião de “Friends” seja um momento de neutralidade na cansativa guerra cultural. Neste meu delírio alienado, a dúvida sobre a traição de Ross quando estava dando um tempo com Rachel voltará a figurar como questão de máxima importância. Riremos da superficialidade de Chandler, do sexismo de Joey, dos transtornos psiquiátricos de Mônica e das esquisitices de Phoebe. E, com alguma sorte, nisso tudo veremos um pouco dos nossos erros e acertos também.