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Nem ele, o grande revolucionário da imprensa alternativa ultraprogressista, aguentou. O jornalista e ativista Glenn Greenwald usou o Twitter para informar que está de saída do site de notícias que ajudou a fundar, o Intercept. A não ser que ele dê uma de Ricardo Salles e diga que foi hackeado, do episódio se deduz que o jornalismo militante e revolucionário praticado por Greenwald e os seus já começa a devorar os próprios filhos. E não, a informação de que Greenwald já está sendo sondado para debater com Rodrigo Constantino na rádio Jovem Pan não é verdadeira.
Antes de qualquer coisa, aqui é preciso tirar o chapéu para Glenn Greenwald, que demonstra uma fidelidade rara às causas em que milita. Ao contrário da maioria de seus colegas de profissão e ideologia, que fingem isenção ou que passam a vida produzindo um conteúdo no qual não acreditam, o jornalista norte-americano mostra, mais uma vez, que tem aquilo que o economista e escritor Nassim Nicholas Taleb chama de “skin in the game”, e cuja tradução mais precisa (e popularesca) é inviável neste horário, mas tem a ver com colocar algo na reta. Pode-se (deve-se!) questionar essa mítica “verdade” que Greenwald busca, mas não dá para duvidar da sinceridade da busca.
E tudo porque Greenwald se recusa a abaixar a cabeça para os maquiaveizinhos que veem a imprensa (e as redes sociais) como um instrumento de planificação da informação, com a finalidade de manter no poder os velhos corruptos de sempre, mas agora com um discurso moderno, dinâmico e, no caso do candidato democrata à Casa Branca, Joe Biden, muitas vezes incongruente. Tudo porque a imprensa, seja ela tradicional ou alternativa, ainda tem delírios de ser o Quarto Poder.
Essa é uma miragem que seduz desde os jornalistas de cabelos brancos que viram o Muro de Berlim cair, mas não se conformam, até os jornalistas de cabelos coloridos, muitas tatuagens e o indefectível piercing no nariz, que aprenderam na faculdade que a imprensa tem de exercer seu poder transformador para criar o Paraíso na Terra. O problema é que Greenwald, mesmo com seu porte atarracado, desde o caso NSA fez parte desse cenário encantador e enganoso, e atraiu a admiração de muitos incautos.
O mundo, para o jornalismo militante, revolucionário e progressista do qual até hoje pela manhã Glenn Greenwald fazia parte, é sempre uma grande conspiração. De um lado estão aristocratas, magnatas, gente que acende charuto com nota de US$100, que tem escravos eunucos e que está sempre disposta a alguma sordidez em troca de poder. De outro estão bilhões de vítimas desprotegidas que contam apenas com o jornalismo para se fazerem ouvidas. Tudo muito bonitinho, mas evidentemente falso.
Esse jornalismo, do qual Glenn Greenwald é (e tudo indica que continuará sendo) um dos maiores expoentes, tem por objetivo uma revolução que só não vai entrar para os livros de história porque é difusa demais. É uma revolução que pretende destruir “tudo isso que está aí” e implantar um projeto utópico qualquer. O problema, neste caso específico, é que os jornalistas militantes tradicionais, por assim dizer, acreditam que a revolução passa necessariamente pela eleição de Joe Biden, ou possivelmente Kamala Harris. O revolucionário-revolucionário Greenwald discorda e quer ver o circo pegar mais fogo ainda.
Tanto o jornalismo programaticamente revolucionário quanto o jornalismo incendiário me incomodam. O primeiro por ser evidente imoralidade. O segundo pela violência com que busca a justiça e reparações de todos os tipos e por seu senso de superioridade – que se revela nos olhos que, por natureza tirânicos, brilham diante da possibilidade de imporem uma verdade ou pior, de transformarem a realidade.
Duvido que o pedido de demissão de Glenn Greenwald seja visto pelo que ele realmente é: uma confissão de que a imprensa de viés explicitamente esquerdista é moralmente corrupta e busca retratar a realidade de uma forma que se enquadre em sua antevisão niilista de mundo. Em vez disso, é mais provável que Greenwald daqui a alguns meses retorne triunfante em seu cavalo branco, desde que tenha uma notícia-bomba (pode ser até um estalinho) capaz de causar incômodo aos inimigos de sempre. Até porque a revolução não pode se dar ao luxo de perder um combatente tão bom (ainda que rebelde) quanto Glenn Greenwald.