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Calma aí! Não precisa me botar no pau-de-arara nem enfiar uma agulha sob as minhas unhas. Confesso de livre e espontânea vontade que assisti a um filme de Godard. Na verdade, foram dois ou três. Não me vanglorio, mas também não me arrependo. Aliás, se me arrependo de alguma coisa é de não ter beijado a moça que me acompanhou naquela sessão no mofado Cine Ritz. Como era o nome dela mesmo?
Não lembro. Assim como não me lembro do filme. Do cinema, contudo, me lembro bem. Entrar no Cine Ritz da década de 1990, com aquele odor inesquecível de mofo, urina, café e xerox ainda quentinha, era se sentir imediatamente mais inteligente. Quase superior. E ser reconhecido entre os três ou quatro espectadores que lotavam as sessões dos filmes-cabeças era, sei lá, a glória. Ou deve ter sido. Nunca aconteceu comigo.
Tinha também o Luz e o Groff. Era nesses cinemas fedidos e claustrofóbicos que nós, pretensos gênios (não pense que não te reconheci aí de boina, Sabbag), admirávamos as obras dos gênios – com gê maiúsculo tipo iluminura. E Jean-Luc Godard, que faleceu ontem (13), aos 91 anos de idade, era um desses gênios. Dizem. Não tenho culpa. Quando cheguei a este mundo, já estava assim: Godard e toda aquela tchurminha da nouvelle vague eram gênios incontestes. E, por consequência, motivo de muita angústia para nós, intelectualoides de 20 anos que tomavam chuva e passavam frio à espera de a Cinemateca abrir.
Afinal, se não nos empolgávamos com a nova obra de Godard (lembrei o nome do filme que queria citar no primeiro parágrafo: "Para Sempre Mozart") éramos tidos por caipiras, provincianos e ignorantes. Pior ainda se não entendíamos a narrativa sempre muito brilhante e profunda, pontuada por revolucionários jump cuts. Ora, só os energúmenos, idiotas e analfabetos, os que morreram por dentro, os que não têm a poesia correndo no sangue, os inferiores é que não entendiam Godard. Que, no mais, não é para ser entendido, e sim para ser sentido. (Perdi as contas de quantas vezes ouvi, a sério, essa balela aí).
Quem não apreciava Godard (pronuncia-se “godarde” mesmo) era porque estava contaminado com o lixo tóxico produzido pelos grandes estúdios estadunidenses. Aquele blá, blá, blá todo de bicho-grilo apavorado com a possibilidade de o Bug do Milênio provocar um apocalipse. Para ser filosófica, poética, estética, ética, psicológica e politicamente boa, a obra de arte tinha de ser ser sobretudo chata, enfadonha, arrastada, morosa e tediosa. Ou, como se dizia na época dos bichos-grilos de verdade, cacete.
Para piorar, essa inteligência bocejante tinha de estar envolta num hermetismo intransponível. Ou, por outra, acessível apenas a uns poucos iluminados. Desvende uma só chave semiológica num frame de Godard e você se torna imediatamente um intelectual(oide). Do tipo de (des)taca os elementos das palavras com (para)êntesis.
Por sorte, percebi rapidamente toda a impostura que cercava aquele mundinho. Mas isso é história para outro texto, porque este está chegando ao fim com um lamento. Afinal, era para ser um texto que aproveitasse a triste efeméride para, assim meio proustianamente, falar sobre os diferentes cheiros dos cinemas onde eram exibidos os filmes de arte (pronuncia-se “ártchy”). Era para ser também uma homenagem à pretensão juvenil. Essa que está em falta hoje em dia. Mas não deu tempo.
E o que acabou saindo foi isso aí. Um texto que, me ocorre agora, pode soar desrespeitoso para os fãs do cineasta, aos quais peço antecipadamente desculpas. Não foi minha intenção. É que Godard, para mim, há algum tempo deixou de ser uma pessoa de carne e osso e que faleceu ontem (13), e virou praticamente um adjetivo a ser usado para se referir a tudo o que é pernóstico. A essa ideia de contemplação que requer nota de rodapé e índice onomástico.
Antes de encerrar, preciso reforçar aqui que não me lembro do nome da moça que me fez companhia no cinema naquele dia. Não sei se era morena ou loira, embora provavelmente fosse linda e inteligente como todas as mulheres que já se interessaram por mim. Também gostaria de acrescentar que minha esposa é maravilhosa. E dizer que não, ela não está de modo algum aqui ao meu lado, fazendo a internacionalmente conhecida “boquinha do ódio” e me fulminando com o olhar de quem é muito serena e não sente ciúme algum do marido.