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1 Disse Santo Agostinho: “A verdade deve ser dita com amor, mas o amor nunca pode impedir a verdade de ser dita”. E é com esse espírito que proponho que pensemos a realidade política do Brasil hoje, uma semana antes das manifestações de Sete de Setembro.
2 Agora não se passa um dia sem que Jair Bolsonaro sugira a possibilidade (e até a inevitabilidade) de um golpe, contragolpe, revolução, ruptura, intervenção – chame como quiser. Também “o outro lado” parece ter um golpe (ou tentativa de) como favas contadas. Ou foi à toa que o ministro Ricardo Lewandowski escreveu um artigo intitulado “Intervenção armada: crime inafiançável e imprescritível” na Folha de S. Paulo?
3 Para uma parcela mais afoita da população, a ideia de um golpe, contragolpe, revolução, ruptura ou intervenção – chame como quiser – soa como música. Para essas pessoas, um golpe representa a esperança de um país sem corrupção, sem o ativismo do STF e sem a imoralidade da cultura progressista. Um país onde, por meio da força, prevaleça a ordem e o progresso presentes na nossa bandeira.
4 Há tempos venho dizendo aqui que essas pessoas não devem ser hostilizadas, e sim compreendidas. A visão de mundo delas é legítima – ainda que eu a considere equivocada. A questão é: o que as levou a pensar assim? Que decisões foram tomadas nas últimas décadas a ponto de fazer com que essas pessoas tenham perdido a confiança na nossa capacidade de chegarmos a consensos por meio de diálogos?
5 A pergunta é retórica, mas cabe aqui uma sugestão de resposta: a corrupção (no sentido mais amplo da palavra). Quem tem esperança num golpe de Estado é porque deixou de acreditar que os homens que tomam as decisões o façam com outro interesse que não o próprio. Quem anseia por uma ruptura é porque perdeu a capacidade de ver no seu semelhante um aliado. Aliás, perdeu até a capacidade de ver no outro um semelhante.
6 Para os conservadores, este momento de triunfo do espírito revolucionário representa um enorme dilema. Simplesmente porque conservadores, por definição, são contrários a uma revolução. Não existe, portanto, essa coisa de “revolução conservadora”.
7 O problema é que a democracia, por meio de instrumentos alicerçados na Tradição (ainda que uma tradição recente), deu origem a um sistema flagrantemente corrupto, construído de forma a amordaçar qualquer ímpeto conservador. É um sistema no qual o prudente é um pária por “impedir o avanço da história”.
8 Esse sistema, portanto, impede a ação de um governo conservador ao sujeitar as “regras do jogo” aos princípios maleáveis do progressismo. E agora, José?
9 Os problemas de um golpe, contudo, são vários e se acumulam. Um deles: a tentação do poder autoritário, por mais bem-intencionado que ele se diga, também é uma forma de corrupção. Me refiro, aqui, à corrupção da alma expressa por essa vontade de consertar o mundo na marra, de acordo com a visão particular de um ou mais líderes.
10 Pior: a crença popular num déspota esclarecido é também uma forma de corrupção. Porque pressupõe a existência de um líder com poderes semidivinos que nos conduzirá a uma era de paz e prosperidade. Desse discurso se apropriaram absolutamente todos os tiranos do século XX.
11 Muitos justificam hoje a “necessidade” de um golpe dizendo que ele seria, na verdade, um contragolpe. Até entendo e, com algum esforço, a ideia pode fazer sentido. O problema, aqui, é que essa justificativa significa se apegar a uma ideia revolucionária e anticristã – a de Maquiavel. Essa ideia pressupõe princípios maleáveis que têm de se adaptar às circunstâncias. Por uma ironia triste, essa é a mesma ideia que justifica as iniciativas progressistas mais abjetas.
12 O ideal é que o sistema corrompido fosse enfrentado com inteligência, convicção e paciência – três valores escassos hoje em dia. Inteligência passa por perceber que o mundo de hoje prefere o simbólico ao real, o que é dito ao que é feito. Convicções têm a ver com uma base moral sólida que permitisse ao governante tomar decisões sem levar em conta os efeitos imediatos e muitas vezes impopulares delas. Quanto à paciência, bom, acho que ninguém vai discordar se eu disser que vivemos tempos impacientes, não é mesmo?
13 Ainda que fosse possível ver em Bolsonaro um déspota esclarecido, o problema de um golpe não é só o arbítrio do presidente e de seus comandados diretos. O problema de uma ruptura é o arbítrio do guardinha na esquina, do funcionário público por trás do balcão, do fiscal que, por algum motivo, se sente ofendido, etc.
14 Um golpe é, portanto, uma confissão de derrota e equivale a reconhecer que não sabemos conviver com as diferenças.
15 Um golpe, contragolpe, revolução, ruptura, intervenção – chame como quiser – nos desciviliza.
16 Não tenho procuração nem pretensão de falar em nome dos conservadores. As reflexões que proponho aqui são fruto de uma visão muito particular de mundo - a minha. Tenho, porém, noção da minha pequenez. Só acho que, de vez em quando, esse grãozinho de mostarda aqui também tem o direito (ou seria dever?) de arder.