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Houve um dia, há uns cinco anos, em que resolvi voltar a escrever. Simplesmente voltar a escrever. Naquele dia, me levantei da cama ou do sofá, fui até o quartinho que funcionava como escritório, mas nunca era usado, abri o computador e recomecei. O objetivo era ambicioso: escrever uma história do começo ao fim e que me desse algum tipo de prazer.
Escrevi. E, desde então, não parei mais. O problema é que, num dia especialmente triste, de uma tristeza tão especial cuja motivação felizmente se perdeu no tempo, me lembrei de um professor (oi, Élio, será que você está me lendo agora?) que um dia se demorou em explicar o significado real da palavra “desgraçado” – isto é, desprovido da Graça de Deus.
Naquele dia que deve ter sido triste e eu nem lembro por quê, escrevi algo que, por falta de palavra melhor, chamarei de “crônica”. Infantilmente intitulada “Graças e desgraças”, ela contava a história do professor e falava de como aquele termo se aplicava à minha condição geral. Por alguma razão provavelmente muito estúpida, eu me sentia desprovido da Graça divina. Um desgraçado.
A crônica ficou para trás, assim como a tristeza, se é que havia tristeza de fato. Desde então, sou cotidianamente agraciado. E sinto a presença da Graça na companhia das pessoas que amo, nas conversas edificantes ou não, nas piadas ruins das quais rio com sinceridade, nas palavras de incentivo e até nos xingamentos que, mal sabem os detratores, servem de contraponto àqueles versinhos de Fernando Pessoa que eu costumava entoar nos piores dias dos meus piores anos, e que terminam com a conclusão agridoce de que “tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
Clichês
Nos últimos meses, porém, têm sido comuns os dias em que acordo pensando no fato de eu ter escrito uma crônica falando da minha condição (falsa) de desgraçado sem nunca ter escrito sobre a minha condição de bem-aventurado. Deus me livre ser lembrado por um texto que escrevi num dia ruim e que, no fundo, nada mais era do que um pedido torto de socorro! Eu tinha de escrever algo dizendo que sou uma pessoa afortunada, um ser cheio de Graça – e, com sorte, alguma graça.
O desafio estava em não cair no clichê – aliás, pouco auspicioso – de ficar me vangloriando daquilo que só uma ilusão muito contemporânea, muito secular e muito superficial pode chamar de “realizações”. Outro desafio estava em não usar aquela palavrinha da moda que expressa tão bem essa visão ridiculamente riponga da vida: gratidão. E, sim, pode apontar o dedo porque acabei de usá-la.
Outro problema é que a paz que nasce dessa sensação de ser mais do que “um nada” é, como toda paz, desinteressante. É como ficar olhando a grama crescer ou ainda como passar uma hora diante de uma parede em branco. É praticamente um “coma literário”. Posso estar enganado e até torço para que esteja mesmo, mas tenho a impressão de que as pessoas gostam mais daquilo que chamam de desgraça e que ora se manifesta numa tragédia vinda do mundo cão, ora num deslize opinativo que causa uma reviravolta na vida alheia, ora na onipresente raiva.
Sede
Por isso os dias foram passando e eu fui deixando o texto para lá. Como se me confessar digno da Graça fosse algo menor e até um atrapalho – que absurdo! Como se eu me sentisse intimidado pela ideia de algum leitor reclamar da minha hipersensibilidade, quando não da minha pieguice. Como se eu tivesse uma mistura impossível de vergonha e soberba da minha condição de ser humano capaz de olhar para o futuro com algo mais do que enfado ou, pior, medo.
Hoje, porém, enfrentei o frio e a chuva para ir à tabacaria aqui perto de casa. Uma coisa leva a outra e eu me lembrei do poema de Fernando Pessoa, que por sua vez trouxe à tona as memórias daquela crônica e da sensação que me levou a escrevê-la. De volta ao quentinho da minha casa, sob a água quase melíflua do banho, decidi que estava mais do que na hora de aceitar o delicioso fardo da vida e de anunciar, não sem um quê de constrangimento, que da fonte da Graça todos os dias tenho a sorte de beber.
E não tenho mais tanta sede.
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