Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num golpista.| Foto:
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Dando uma de escritor modernoso e descolado nesta província de araucárias esturricadas, peguei meu Moleskine e minha tinteiro e fui para a praça escrever. Tinha uma ideia antiga que implorava para ganhar vida, embora não fosse das mais originais: uma versão de “A Metamorfose”, de Kafka, na qual Gregor Samsa acorda transformado num patriota-golpista-antidemocrático. O combo todo. A história começava mais ou menos assim:

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Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num golpista. Estava deitado sobre uma bandeira do Brasil e, ao levantar um pouco a cabeça, viu-se nu e todo pintado de verde, amarelo, azul e branco. Até lá? Sim, até lá. Nas mãos, ele segurava cartazes com os dizeres “Brazil was stolen” e “SOS Forças Armadas”. O que aconteceu comigo? – pensou.

Foi então que de repente, não menos (nem mais) do que de repente, apareceu diante de mim a sombra intimidadora do guarda Aleixo O+. Era o que estava escrito no uniforme. Com um só golpe de cassetete, o guarda de traços raciais indiscerníveis e orientação sexual idem jogou longe meu Moleskine e minha tinteiro – que foram imediatamente reclamados pelos cracudos das proximidades. Antes que eu tivesse tempo de me perguntar o que um cracudo faria com um caderno metido a besta cheio de anotações, Aleixo O+ me deu voz de prisão: “Teje preso!”.

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Aqui na crônica faz sentido, mas na vida real não precisei perguntar o motivo da truculência e da voz de prisão. Afinal, estava mais do que na cara que aquilo era uma consequência do puritanismo democrático do... “Fala! Quero ver se você é homem. Fala o nome dele se for macho”, intimou o guarda. Eu disse e ele pareceu ter ficado um tanto surpreso com minha inesperada demonstração de virilidade cívica.

Mais por sadismo do que por dever profissional, me explicou então o guarda Aleixo O+ enquanto fechava as algemas de plástico biodegradável que eu estava sendo preso por expressar ideias antidemocráticas em praça pública e em plena luz do dia. “Tem crianças ao redor, não está vendo?!”, perguntou ele, revoltado com minha impudícia patriota. Olhei em volta e, além dos cracudos, vi apenas dois anões e um pipoqueiro. Nenhuma criança.

“Posso explicar?”, perguntei. Ao que ele me respondeu que poder eu podia, mas não adiantaria nada. Expliquei mesmo assim, até porque senão a crônica terminaria aqui. “Seu guarda, eu estava escrevendo uma paródia de Kafka para expor os conflitos do personagem. Meu Gregor Samsa é um democrata até o tutano. Digo, talvez não seja tão democrata quanto o seu chefe, mas é um democrata. Só que, de repente, ele acorda querendo intervenção militar. Um golpe. Ou contragolpe. Simplesmente porque, para o personagem, se esgotaram as saídas verdadeiramente democráticas para a crise institucional que vivemos. Entendeu?”. Não tinha a menor esperança de que ele tivesse entendido patavina.

Mas, para a minha sorte (ou seria azar?), graças aos prounis da vida o guarda Aleixo O+ tinha cursado dois semestres de Letras Português-Alemão numa Uniesquina qualquer. E por isso se achava conhecedor dos paranauês literários todos. “Kafka, hein? Es ist nicht wie Machado de Assis, aber ich mag es irgendwie. Então quer dizer que você não é golpista?”, perguntou ele, afetando ser poliglota. Bastava eu ter dito que não e ele seguramente me liberaria, pedindo desculpas pelo Moleskine e pela tinteiro e trocando impressões sobre Goethe, Thomas Mann ou Günter Grass. Mas eu sou trouxa, nunca neguei. Quis conversar e.

“Sou um pouco golpista, sim”, respondi. “Mas só em pensamento. E não é sempre. Tem dia que sim. Tem dia que não. Aliás, era justamente sobre esse estranhamento que eu pretendia escrever usando a paródia de Kafka. No geral, sou um democrata. Não assim um democrata até debaixo d´água. Não vamos exagerar. Mas um democrata que vai votar e finge que acredita. Ainda assim, muitíssimo mais democrata do que o seu chefe. Mas ultimamente tenho sentido no rosto umas lufadas golpistas. Uma cosquinha no coturno imaginário, sabe? Um desejo bem pequenininho, desse tamanhinho assim, ó, de que apareça um herói disposto a por ordem na casa da mãe Joana. E não sei lidar com isso. Da mesma forma que o Gregor Samsa não sabia lidar com suas patas finas de artrópode”.

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Ele ficou ali cofiando o cavanhaque imaginário. Na hora me lembrei do meu grande amigo Jones Rossi, que tem umas teorias lombrosianas sobre o caráter de quem usa cavanhaque. Mas não disse nada. Não sou nem louco! “Então você pretendia refletir sobre o golpismo, a democracia e o estado atual das coisas?!”, perguntou ele uma oitava acima do normal – daí o ponto de exclamação. Todo orgulhoso, abri um sorriso, fiz que sim e ainda estufei o peito para emendar: “E, com alguma sorte, pretendia fazer os leitores da Gazeta do Povo refletirem também”.

Para quê! Aleixo O+ ficou furioso. E, ostentando a carranca sádica de um agente da lei a serviço da polícia do pensamento, me jogou dentro do camburão. Que cheirava a churros fresquinhos – vai entender. Assim que o carro partiu, e um tanto quanto entorpecido pelo cheiro de fritura e doce de leite, me dei conta de que na verdade meu crime foi ter usado a obra errada para fazer paródia. É que sempre achei “O Processo” chato paca.