Coincidência pura. Depois de algumas cervejas e discussões divertidamente acaloradas sobre minha implicância recente e passageira com Machado de Assis, meu amigo André (o “boêmio que nunca tinha comido lambari frito”) me recomenda ler os contos machadianos. Os mesmo que li há muito tempo numa celebrada edição – mas dos quais me lembro pouco. Ainda tontinho de alegria fraterna, compro uma coletânea que me parece satisfatória e espero. Sentado, que de pé cansa.
Chega o livro e eu mal posso esperar para me sentar na cadeira de balanço recém-comprada e lê-lo com a devida vênia – e quiçá até as devidas mesóclises. É o que faço assim que surge a primeira oportunidade. Logo na segunda página do conto “O Machete”, porém, uma surpresa nada agradável. Ainda mais para alguém que já implica desnecessariamente com Machado de Assis.
Estou falando de uma vírgula separando verbo e objeto ou sujeito e predicado. “Deve ter sido um deslize do editor”, penso, decidido a ser generoso com o escritor que eu sei que é grande – embora não o considere o maior. Uma ou duas páginas adiante, contudo, me deparo com um parágrafo especialmente problemático. Não são nem uma nem duas, e sim três vírgulas pessimamente colocadas. Vírgulas que seriam imperdoáveis para qualquer escritor. Ei-lo:
“Carlota era filha de um negociante de pequena escala, homem que trabalhou a vida toda como um mouro para morrer pobre, porque a pouca fazenda que deixou, [sic] mal pôde chegar para satisfazer alguns empenhos. Toda a riqueza da filha era a beleza, que a tinha, ainda que sem poesia nem ideal. Inácio, [sic] conhecera-a ainda em vida do pai, quando ela ia com este visitar sua velha mãe; mas só a amou deveras, [sic] depois que ela ficou órfã e quando a alma lhe pediu um afeto para suprir o que a morte lhe levara”.
Dizer que Machado de Assis era analfabeto seria um exagero, além de deselegante e semanticamente equivocado. Mas, em não tendo mudado a gramática, o que explica, então, a manutenção dessas vírgulas aí? Incontáveis foram os editores que, ao longo das décadas, poderiam ter atualizado a ortografia e corrigido esses erros. Ou será que Machado de Assis é um ídolo literário tão absoluto que até seus equívocos devem ser admirados?
"Drão, o amor da gente é como um grão"
Superada a questão das vírgulas (que, depois desse malfadado parágrafo gramaticalmente ébrio, parecem ter voltado ao normal), continuo a ler para descobrir que Machado de Assis, com este conto originalmente publicado em 1878, previu melancolicamente a eleição de Gilberto Gil para a Academia Brasileira de Letras.
O conto fala de Inácio, um artista com “a” maiúsculo e todo trabalhado no rococó. Do tipo que não existe mais. Violoncelista, Inácio é apaixonado pela música, claro, mas é um compositor contido, que não busca maiores aplausos e que vê no seu instrumento apenas uma forma de expressar emoções elevadas. Inácio se casa com Carlotinha, uma mulher que, no conto, representa o, digamos, ânimo da multidão. Ela não é exatamente ignorante, mas também não é lá muito esclarecida. Ela se esforça para compreender e até admirar a arte do marido. Mas.
Mas eis que Inácio recebe a visita de dois estudantes de direito. Um deles, o Barbosa, tocava o machete – que é assim uma espécie de cavaquinho. Ao contrário do soturno violoncelo, reservado apenas às emoções muito profundas (e raras) de Inácio, o machete está destinado à alegria ruidosa e abundante de quaisquer encontros sociais. Menos, talvez, de um velório. “Que rivalidade era aquela entre a arte e o passatempo?”, é a pergunta que o narrador faz ao leitor. E é ela que explica o incômodo causado pelo ingresso do machete Gilberto Gil numa casa de violoncelos como a Academia Brasileira de Letras.
A resposta à questão retórica é um vespeiro no qual não pretendo pôr a mão. Não hoje. Ela envolve noções altamente espiritualizadas do que significa a arte e até uma diferenciação fora de moda entre felicidade e alegria. Além disso, para respondê-la eu teria de travar algumas batalhas que sei de antemão perdidas. A popularidade e o sucesso dela decorrente são hoje objetivos declarados de todos aqueles que se pretendem artistas. E quem questionar isso, você sabe, não passa de um invejoso.
Mas, a título de curiosidade, fica aqui o parágrafo em que Machado de Assis descreve bem a impressão que a arte popular causava nele e nos seus pares fundadores da antes solene Academia Brasileira de Letras:
“(...) Ali postos os quatro, numa noite da seguinte semana, sentou-se Barbosa no centro da sala, afinou o machete e pôs em execução toda a sua perícia. A perícia era, na verdade, grande; o instrumento é que era pequeno; O que ele tocou não era Weber nem Mozart; era uma cantiga do tempo e da rua, obra de ocasião. Barbosa tocou-a, não dizer com alma, mas com nervos. Todo ele acompanhava a gradação e variação das notas; inclinava-se sobre o instrumento, retesava o corpo, pendia a cabeça ora a um lado, ora a outro, alçava a perna, sorria, derretia os olhos e fechava-os nos lugares que lhe pareciam patéticos. Ouvi-lo tocar era o menos; vê-lo era o mais. Quem somente o ouvisse não poderia compreendê-lo”.
Com esse parágrafo, Machado de Assis praticamente profetiza a transformação da arte que ocorreria no século XX e que acabaria por reduzi-la praticamente toda a entretenimento. Transformação essa que teve como consequência o Nobel de Literatura para Bob Dylan e o ingresso de Gilberto Gil para a antes tradicional Academia Brasileira de Letras. Gosto sobretudo de quando ele diz que Barbosa não tocava com a alma, e sim com os nervos. E isso que Machado de Assis nunca ouviu rap, hein?! Gosto ainda da descrição da apresentação de Barbosa – que se assemelha muito a qualquer show de música popular, seja ela rock ou funk.
O fato é que, em “O Machete”, Carlotinha se deixa seduzir pela “energia à flor da pele” da música popular, deixando a melancolia profunda do violoncelo para trás. E com um filho pequeno para criar. Volúvel, instável e sentimental, Carlota não é na história apenas uma mulher, e sim toda a multidão que os artistas hoje, se anseiam à imortalidade oficial, precisam cortejar, seduzir e desposar.
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