O programa Profissão Repórter mostrou fiscais municipais destruindo a vida de pequenos comerciantes. Tudo por causa das medidas restritivas impostas por diversas prefeituras. São cenas de embrulhar o estômago e que remetem a regimes totalitários do passado. Pode apostar: por trás de um Hitler ou Stalin havia sempre um fiscalzinho ou um guardinha doidinho para exibir os caninos afiados do pequeno poder.
Para minha surpresa, contudo, a comoção diante das imagens nauseabundas se restringiram a meia dúzia de tuiteiros mais ou menos desocupados. Para a maioria das pessoas, aquelas eram cenas absolutamente normais de funcionários públicos exercendo suas funções em nome da ciência e do bem-estar coletivo.
Uma coisa leva a outra e, num primeiro momento, me lembrei de Ítalo Calvino. “Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e abrir espaço, fazê-lo durar”, escreveu.
Será que estamos vivendo o inferno a ponto de deixar de percebê-lo?
Agora eu era herói
Depois me lembrei daquele filme cheio de tesouros que é “Uma Vida Oculta”, de Terrence Malick. Numa das cenas mais interessantes, dois homens conversam numa capela. Se me lembro bem, um deles é um restaurador. Mas, se não for, não tem importância. O importante é o conteúdo do diálogo que, em linhas gerais, diz que a maioria das pessoas gosta de acreditar que, se vivesse no tempo de Jesus, jamais teria sido mais um na multidão a clamar pela soltura de Barrabás.
O nazismo de que é vítima o protagonista do filme, Franz Jägerstätter, nos oferece uma versão atualizada desse dilema. Todo mundo gosta de pensar que, se vivesse na Alemanha da década de 1930, se oporia a Hitler e suas ideias verdadeiramente genocidas. Há quem goste de se imaginar herói, escondendo judeus no sótão de casa ou participando de algum esforço de resistência contra a SS.
Ou, para usar um exemplo ainda mais atual e local, não são poucos os da minha geração que sentem a neymariana “saudade do que não viveu” ao evocar a guerrilha tupiniquim contra a Ditadura Militar. Eles imaginam a vida clandestina e revolucionária como se fosse um videogame inconsequente e como se as torturas fossem apenas histórias da carochinha para assustar pequenos-burgueses alienados.
Mas a verdade é que a maioria das pessoas, se não apoiava explicitamente o hitlerismo, ficou em silêncio e obedeceu. Por medo, certamente, mas também por não querer se importunar com “essa coisa de política” - que é o estado natural do ser humano, aliás. Não se trata de uma falha de caráter e erra quem se apressa em condenar a inação. Procurando bem, é possível até encontrar alguma dignidade nela. Quem não se calaria para proteger a própria família que atire a primeira pedra.
Também a maioria continuou vivendo a vida pequena depois do Golpe de 1964. Meu pai, por exemplo, trabalhava de garçom no Exército. Minha mãe vendia sapatos em Altônia - uma cidadezinha perdida no interior do Paraná. Quando adolescente, meio zonzo de hormônios e umas revoluçõezices, perguntei a eles como era possível que não fizessem parte da luta armada. Que não fossem hippies. Que não lutassem por democracia, um mundo melhor e a realização de todos os clichês da esquerda.
Riscos
É sempre assim e, aqui, cabe uma autocrítica: nosso heroísmo é sempre pretérito e nossa aparente covardia, muito presente. Como sabemos que é impossível pegar um Delorean e voltar à época do Terceiro Reich, estufamos o peito para dizer que mataríamos Hitler assim que ele começasse a cultivar aquele bigodinho grotesco. Quando, na realidade, é bem provável que obedecêssemos como hoje obedecemos, em nome de uma ilusória segurança sanitária, a governadores e prefeitos que tomam decisões ilógicas, baseadas na estúpida ciência do achismo.
O que pouca gente que clama por heróis contemporâneos contra o lockdown, a “ditadura do Judiciário”, o necrobolsonarismo e outros moinhos de vento se dá conta é que o ato heroico requer sacrifício e, por consequência, sofrimento. Muito sofrimento. Qualquer espectador de "Star Wars" (que, por extensão, é um leitor de Joseph Campbell) sabe que o heroísmo é sempre consequência de um risco muito, muito, muito alto. A questão é: você está disposto a pagar o preço para bancar o herói?
Por uma conjunção de fatores que não sei explicar, a impressão é a de que vivemos uma época carente de pessoas dispostas a assumir riscos a fim de defender princípios. Eu mesmo não sou uma delas. Pelo contrário. Até me fustigo nas raras vezes em que ouso ir contra a corrente, argumentando o que considero certo, a despeito dos olhares atravessados dos amigos. É bem possível que você tampouco seja. E não há nada de mau nisso.
Ainda que a coragem seja um pressuposto do heroísmo, a ausência dessa coragem heroica não significa exatamente covardia. Significa apenas que, rotineiramente, fazemos um cálculo, avaliando todas as informações de que dispomos, e por meio de uma aritmética espiritual chegamos à conclusão de que o melhor é o silêncio, a inação, a obediência – e a esperança de que o Bem volte a triunfar sobre a diabólica arrogância que nos cerca.
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