Costumo dizer que começo a trabalhar antes mesmo de acordar. E é verdade. Acordo antes do despertador, por volta das 5h30, e fico olhando para o teto, invariavelmente rascunhando o que pretendo escrever ao longo do dia. É minha hora mais criativa. Sem quaisquer filtros, eu me permito pensar nas frases mais absurdas, daquelas de dar nó na cabeça do leitor.
Mas daí acordo e aos poucos vou me lembrando de que o leitor cotidiano não quer que um estranho mexa demais com sua cabeça. Que é preciso certa disposição para se deixar levar pela mão por um raciocínio labiríntico – e que essa disposição é rara (daí porque Jorge Luis Borges desperta tanta repulsa). Que a imaginação firmou um diabólico pacto com a realidade, que a escravizou. E quase sempre desisto.
Tomo banho. Dou comida para a Catota. Faço café. Levo bronca porque derramei leite pela cozinha inteira. Me sento à mesa e ali chafurdo no caldeirão de ressentimentos das redes sociais à procura do que em jornalismo chamamos de “gancho”, isto é, um fato muito concreto que possa ser usado para elucubrações um pouco mais abstratas e coloridas.
Logo de cara me deparo com um link para a coluna dominical de Miriam Leitão. O tuíte diz o seguinte: ”Na disputa entre Lula e Bolsonaro só há um extremista: Bolsonaro. Repito o que disse em 2018: o PT jogou o jogo democrático e Bolsonaro quer cancelar a democracia”. Por um instante, nutro a esperança de que seja uma brincadeira, um jogo de palavras, uma provocação para “tirar o leitor da zona de conforto” – ou qualquer outra desculpa do tipo.
Mas não. É nisso que Miriam Leitão parece acreditar. E acreditar a ponto de se expor à fúria de um leitor que não se contenta mais em ler o jornal em silêncio, enquanto mergulha o pão francês no café com leite. Um leitor que precisa expor sua indignação com o máximo de pontos de exclamação possível. Um leitor que se julga vítima da opinião alheia – por mais inócuas que sejam as palavras.
Penso, por um instante, em convidar o leitor a uma reflexão sobre o papel dos traumas pessoais nas análises políticas. “Mas hoje em dia quem é que tem tempo para refletir, Paulo?”, me pergunta o anjinho no ombro direito, me pegando pela mão e me ajudando a contornar a armadilha. No ombro esquerdo, porém, o diabinho é mais sedutor. “Vai lá, argumenta que ela escreve essas coisas porque foi torturada pelo Estado e que essa é uma experiência inalcançável para a maioria das pessoas. Se joga!”, diz ele, como se cunhasse um slogan publicitário genial.
Aí lembro que, recentemente, fui chamado de corporativista. Logo eu que tenho aversão a quem se define pela profissão – ainda mais a de jornalista. E tudo porque andei dizendo que “não gosto de ficar falando mal do trabalho de jornalistas”. E não gosto mesmo.
Minha motivação para isso não tem nada a ver com o espírito de corpo. Aliás, que fique registrado aqui: sinto nojo da ética sindicalista. Na verdade, minha hesitação em falar do trabalho alheio tem a ver com um princípio que tento aplicar a todo mundo em todas as profissões: a de que as pessoas, por mais que errem e por mais que eu possa discordar de suas ideias, estão tentando fazer sempre o seu melhor.
“Até Míriam Leitão?”, me perguntará alguém. Até ela. Até Glenn Greenwald. Até Ruy Castro e Hélio Schwartsman, que já foram temas de colunas por aqui. Até João Paulo Cuenca (acho) e Pondé. Até Marcia Tiburi. Se calhar, até Felipe Neto está fazendo o seu melhor, em que se pese o fato de o melhor dele ser chamar a atenção com ideias rasas e coloridas para crianças de todas as idades.
Há mentira e má-fé no jornalismo? Há. De ingênuo eu só tenho a cara e o jeito de andar. Mas, nos casos em que identifico má-fé e a prática sistemática da mentira, minha estratégia é simples e eficiente: imagino como deve ser triste a vida do jornalista mais militante, esse para o qual é insuportável conviver com as diferenças e que precisa correr para as redes sociais para registrar sua indignação, esse para quem o mundo é um lugar hostil, cheio de conservadores maus e progressistas que só querem espalhar o amor, esse que se considera o ombudsman do mundo. O castigo pelo pecado é o próprio pecado, diria alguém – e eu seria obrigado a concordar.
Ainda é cedo. Tomado pela melancolia matutina de quem sabe que elementos externos influenciam tanto a emissão quanto a recepção das palavras que escrevo rindo, mas que não raro são lidas por pessoas para as quais o jantar de ontem não caiu muito bem, ligo para meu editor. “Desculpe, mas não vai ter coluna hoje”, digo.
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