Onde foram parar as pessoas boas?/ Eu vivo trocando de canal e não as vejo nos programas de TV/ Onde foram parar as pessoas boas?/ Nós colhemos mais e mais do que semeamos* – em tradução livre, criativa e adaptada à prosa, é o que canta o cantor e surfista gente boa Jack Johnson em “Good People”.
Me lembrei dessa música depois de assistir a uma análise feita pelo meu amigo Filipe Trielli do filme “O Sol É Para Todos” (1962), com Gregory Peck e baseado no livro homônimo de Harper Lee. Acho que já falei dele por aqui. Do filme, digo, não do amigo. Pois bem. A certa altura, Trielli ressalta o caráter bom do protagonista Atticus Finch e diz que esse tipo de representação realista da homem comum e bom desapareceu do cinema.
Quimera
E desapareceu mesmo. Estou há horas buscando aqui na memória e... nada. Para o cinema contemporâneo, o homem pode até querer ser bom e sábio, mas nunca vai conseguir ser um exemplo admirável por causa dos esqueletos que guarda no armário. Por causa da hipocrisia. Por causa de qualquer erro ou defeito que hoje, na Era das Ideias Imperdoáveis, anulam imediatamente a nobreza da busca pela caridade e sabedoria.
O que explica muita coisa. Muitos dos nossos problemas. Afinal, na ausência de representações fictícias de homens bons e sábios e de caráter, como podemos pressupor que existam homens bons e sábios e de caráter na vida real? Não podemos. Daí pressupormos justamente o contrário: todo mundo, tanto no cinema quanto nas ruas, é mau. Assim, a busca pela caridade e sabedoria vira uma fantasia. Uma tolice. Uma quimera. Coisa de carola, como já me disse alguém.
Herói instagramável
A falta de pessoas boas em filmes, séries, novelas, livros e até no noticiário explica também a forma como encaramos a política: não como uma disputa de dois lados que almejam um futuro melhor para si e para os seus (o tal do bem comum), e apenas divergem quanto aos meios para se alcançar algo remotamente semelhante à paz e prosperidade. Não! Encaramos a política como a disputa entre duas pessoas ou grupos que defendem interesses escusos e querem impor uma utopia, e cuja vitória pressupõe necessariamente a destruição do adversário.
Sendo ironicamente fatalista, e inspirado pela observação perspicaz do Trielli, diria que Nietzsche venceu: tanto na cultura de massa quanto no embate ideológico, o homem que almeja a santidade e a sabedoria é visto como um fraco destinado a ser esmagado pelo Sistema. Ele é a antítese do herói invejável, bem-sucedido e instagramável; do homem que confunde sabedoria com esperteza e bondade com algum ressentimento de que ele se orgulha e com alguma causa que pode até parecer nobre, mas que no fundo é apenas um vulgaríssimo desejo de vingança.
Frederico Bigodão
É quase como se a sociedade, por meio da arte, estivesse nos dizendo que Abel era um idiota, que o Bom Samaritano era um otário e que, se o Filho Pródigo tivesse continuado naquela vida devassa e miserável, e não voltado para a rotina tranquila e abundante da casa do pai, hoje estaria rico dando curso sobre como sobreviver à base de lavagem e ser feliz.
Mas é aí que o Seu Frederico Bigodão se engana. Porque, a despeito da subrepresentatividade na política e na cultura de massa, o homem bom e que sonha em ser um velho sábio, daqueles que tiram o relógio de bolso da algibeira e, diante de uma dúvida filosófica qualquer, respondem com um incontestável “pois é”, resiste. Em silêncio. Discreta e modestamente. Contemplando e agradecendo e cumprindo seus deveres com o máximo de retidão possível. Como convém a um homem imperfeito, mas bom. E sábio.
* No original: Where'd all the good people go,/ I've been changing channels I don't see them on the TV shows/ Where'd all the good people go,/ We got heaps and heaps of what we sow
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