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No fim de semana, observei com algum desespero e muito silêncio um amigo-de-Twitter tentando explicar a seus seguidores que não, ele não é comunista. Previsivelmente, os apelos à razão não surtiram efeito. Quem o considerava comunista continuou considerando assim e quem não o considerava ficou com uma pulguinha atrás da orelha.
Mais do que se justificar para aqueles que o confundem com uma versão menor e interiorana de Stalin, o que meu amigo-de-Twitter estava fazendo era defender a complexidade de seu caráter e intelecto. Por coincidência, para quem acredita nisso, os tuítes que suplicavam por um pouco de compreensão me chegaram no meio da leitura de “O Visconde Partido ao Meio”, de Ítalo Calvino.
A história é de uma simplicidade quase infanto-juvenil. O Visconde Medardo di Terralba vai à guerra contra os mouros, é atingido por um balaço de canhão e acaba, como sugere o título, partido ao meio. Uma das metades é cruel e má. A outra, insuportavelmente boa. No fim, as duas metades se engalfinham numa briga pelo coração da gorduchinha Pamela e acabam unidas num ser novamente inteiro, nem totalmente mau nem totalmente bom.
Assim como o “Inferno” é a parte mais popular da “Divina Comédia”, de Dante, a metade má do visconde é a mais interessante do visconde. Diria que se isso acontece é porque desejamos quase sem perceber calar o mal que nos habita, fazendo prevalecer a bondade que também nos habita, mas que por definição é humilde, discreta e modesta. Na fantasia de Calvino, contudo, a bondade é meio afrontosa e cheira a hipocrisia. Vai entender.
A certa altura do livro, é a porção má de Medardo que explica o porquê da nossa tendência a reduzirmos o outro a meia dúzia de características que nos permitam atestar: ele é bom ou ele é mau. Se fôssemos de fato homens partidos ao meio, estaríamos os maus mais próximos do diabo e os bons mais próximos de Deus. É próprio da maldade, portanto, exaltar e exigir essa pureza ideológica que necessariamente nos torna menos inteiros.
”- Que eu pudesse partir ao meio toda coisa inteira (...), que todos pudessem sair de sua obtusa e ignorante inteireza. Estava inteiro e para mim as coisas eram naturais e confusas, estúpidas como o ar: acreditava ver tudo e só havia a casca. Se você virar a metade de você mesmo, e lhe desejo isso, jovem, há de entender coisas além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de você e do mundo, mas a metade que resta será mil vezes mais profunda e preciosa. E você há de querer que tudo seja partido ao meio e talhado segundo sua imagem, pois a beleza, sapiência e justiça existem só no que é composto de pedaços".
Guerra perdida
Quanto ao amigo-de-Twitter desesperado por se apresentar em toda a sua complexa inteireza e ao mesmo tempo indignado por insistirem em vê-lo por um aspecto restrito de sua visão de mundo, os estoicos há muito ensinam que não há como controlar a opinião que as pessoas têm de nós – por mais equivocadas que sejam, e geralmente são. O fato é que, por mais que nos esforcemos para mostrar ao mundo nossa melhor metade, o olhar alheio é sempre aleatório e, por pressa ou preguiça, se aterá à metade mais exuberante e de fácil assimilação.
Se o outro o conhece num momento de ingenuidade ou mansidão, há de considerá-lo para sempre um ingênuo e manso. Se o conhece em meio a um ataque de fúria, há de vê-lo para sempre como um guerreiro (aliado ou inimigo). Se o conhece depois de um exame de consciência, há de vê-lo como um fraco que se desculpa por ter dado voz a uma porção, e não ao todo. E assim por diante.
Até mesmo amigos próximos se equivocam uns quanto aos outros. Sem falar que a necessidade de reduzir o próximo a um conceito ideológico é natural e até compreensível numa sociedade eternamente à espera da facada nas costas ou temerosa de quem se deixa corromper por trinta dinheiros. Entre os danados a expressarem como veem o mundo, equívocos desse tipo são comuns. É, pois, perdida de antemão a guerra contra a opinião alheia.