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É hoje! A partir das 21 horas, o Brasil inteiro (e Miami também) ficará grudado na WhatsApp News a fim de acompanhar a votação do impeachment do recém-eleito presidente João Dória, do PTSDB. Parece que foi ontem que o ex-governador de São Paulo chegou ao Palácio do Planalto nos braços do povo, depois de vencer o General Mourão com inacreditáveis e inauditáveis 82% dos votos.
“Quem diria?!”, você talvez se pegue perguntando enquanto recolhe as folhas secas da rua para fazer aquela fogueirinha na frente de casa. Ao que sou obrigado a responder que eu, eu diria! Falei sobre isso antes mesmo de Jair Bolsonaro sofrer impeachment, naquele fatídico ano de 2021. Mas, como ensina uma frase atribuída a André Gide e que li numa “Reader’s Digest” em outra encarnação, tudo já foi dito uma vez, mas, como ninguém ouviu, é preciso que se repita tudo de novo.
Lembram da crônica “Lavô tá novo: a incrível promiscuidade política de uma geração mimada”? Publicada ainda em 19 de janeiro de 2021, nela eu já falava sobre a incapacidade de as sociedades democráticas contemporâneas lidarem com a frustração política. E como o impeachment tinha se transformado no instrumento constitucional preferido desses meninos mimados, eternamente em busca de um líder imaculado. Se não me engano, até citei o ensaio “Dreampolitik”, de Joan Didion. Com uma economia de recursos impressionante, nesse texto a ensaísta fala sobre as aspirações políticas dos norte-americanos de 50 anos atrás. Todos imersos em sonhos irrealizáveis. Delírios infantis. Deu no que deu.
Hoffnungpolitik
No mês seguinte, antes de o primeiro pedido de impeachment ser aceito na Câmara pelo novo presidente da casa, Alexandre Frota (cuja vitória previ na crônica “Olerê, olará, o Frota vem aí e o bicho vai pegar”), ri da incrível derrapada política de Jair Bolsonaro no caso das vacinas e da rinha com o então governador de São Paulo, João Dória. Na malfadada crônica “Genocídio triplamente qualificado”, apontava o erro de Bolsonaro naquele momento: ter ignorado o surgimento de um novo anseio popular, ao qual dei o nome de Hoffnungpolitik – porque sou metidão e gosto de fingir que sei alemão (obrigado, Sabbag).
Por causa desse texto descompromissado, mas cheio de pontos de exclamação (onde é que eu estava com a cabeça?!!!!), de repente virei comunista. Só por dizer que a Hoffnungpolitik exigia líderes políticos que dessem às pessoas esperanças – ainda que falsas. Uma obviedade, reconheço. Mas alguém precisava dizer que, naquele momento, as pessoas não estavam nem aí para a eficácia da vacina ou para os anseios políticos de Dória. Elas só queriam que a vida voltasse ao normal. E estavam dispostas a sacrificar qualquer coisa por isso.
Passada a tempestade, e depois de ajoelhar no milho da direita por alguns meses, durante os quais observei caladinho o processo de impeachment de Bolsonaro, no final de 2021 dei um drible no censor do Ministério do Twitter aqui na redação e consegui escrever que o surgimento e a ascensão do dorianismo jamais satisfariam um sistema democrático que parece destinado a sempre, em absolutamente todos os ciclos eleitorais, deixar pelo menos 50% da população com ódio dos outros 50%.
Intitulada “Chegou a hora do D. Sebastião de calças apertadas”, a crônica propunha ao leitor pensar no seu candidato ideal ao cargo de presidente da República. Deixando as paixões de lado, como se isso fosse possível, que características objetivas o candidato deveria ter? E que máculas no passado dela seriam ou não perdoáveis em nome do “bem comum”, essa quimera?
Mãe Dinah e o "Botoxão"
No texto, eu já apontava os problemas do dorianismo. A Hoffnungpolitik perdia força. E a geração mimada para a qual a frustração política é in-su-por-tá-vel já dava sinais de que o antibolsonarismo e antilulismo tendiam a se unir num antidorianismo. Não quero ficar aqui me gabando de meus talentos nas artes adivinhatórias. Mas, sinceramente, o que digo na última frase daquela crônica foi algo de deixar qualquer aspirante a Mãe Dinah no chinelo: “Dória será eleito com 82% dos votos e, seis meses mais tarde, sofrerá impeachment”.
Quando as eleições de 2022 foram antecipadas para março, por decisão monocrática do ministro Ricardo Lewandowski, não hesitei e, num arroubo de criatividade, escrevi a crônica “Eu avisei”. Depois da briga entre o ex-ministro Sergio Moro e o apresentador Luciano Huck, dobrei a aposta com “Te pego lá fora”. (Eu estava numa fase de títulos curtos). E, por fim, na crônica que me rendeu o Grande Prêmio Brasil-sil-sil de Literatura, falei sobre o sacrifício. (Não quero me gabar novamente, mas minha vitória representou o fim da hegemonia do símio Simeão na prestigiada honraria).
Mas Dória não leu o texto em que eu quebrava a regra autoimposta de nunca, jamais, em hipótese alguma escrever essa coisa cafona de “carta aberta” para perguntar, com rima e tudo, “de que você abre mão, João Dória, a fim de virar presidente do Tupiniquinistão?”. Porque, no final das contas, era isso o que as pessoas esperavam e esperam de um presidente que, na cabeça de muitos, ainda tem poderes absolutos: sacrifício.
“O senhor está disposto, por exemplo, a abrir mão da sua vaidade?”, eu perguntava no texto. E citava uma série de outros sacrifícios que Dória ou qualquer outro teria de fazer para permanecer no cargo e, com sorte, apaziguar a metade frustrada da população. Não demorou para essa abstração inclemente chamada "povo" perceber que, assim como seus antecessores, Dória não estava disposto a sacrificar nada. Que ele via o poder temporal apenas como uma oportunidade de impor sua visão de mundo sobre os demais.
O resultado é o espetáculo deprimente que temos diante de nós hoje. Depois do escândalo conhecido como “Botoxão”, João Dória enfrenta a ira de um povo que, liderado por Felipe Neto, pegou gosto por esse negócio de impeachment. Reflexo, possivelmente, da politainment – a forma de ver o processo político como se ele fosse uma temporada do Big Brother. Mas esse é assunto para outro texto. Quem sabe.